Economia / Política
  

Marcelo Seráfico: por uma compreensão relacional das desigualdades

Professor da Universidade Federal do Amazonas comenta estudo sobre as desigualdades socioeconômicas, tema da matéria de capa da edição de março da Cidade Nova

por Daniel Fassa   publicado às 07:00 de 05/03/2015

A matéria de capa da edição de março da revista Cidade Nova traz uma reflexão sobre as crescentes desigualdades socioeconômicas presentes em todo o planeta, com base em informações do estudo "Working for the few" (Trabalhando para poucos), publicado em janeiro deste ano pela ONG Oxfam International. Um dos especialistas que ouvimos para realizar a matéria foi o professor Marcelo Seráfico, da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Confira o que ele pensa sobre o assunto:

CIDADE NOVA - O estudo "Working for the few", foi publicado durante Fórum Econômico Mundial, com o intuito de sensibilizar os participantes. Qual a importância do empresariado para a solução das desigualdades crescentes no mundo? Qual é o papel do Estado, das organizações da sociedade civil e dos cidadãos?

Foto: Divulgação/Facebook

MARCELO SERÁFICO - A primeira questão a ser respondida é qual a origem das desigualdades, de onde elas vêm, e por que existem. As desigualdades são fruto dos modos pelos quais a sociedade distribui entre seus membros aquilo que é por eles produzido coletivamente. Dito de outra forma, elas são a consequência de uma dada estrutura de apropriação da renda cujas repercussões também se fazem ver em outras instâncias, como a do poder político, do acesso à cultura e mesmo aos direitos. Se assim é, cabe saber como se organiza essa estrutura de produção e apropriação da riqueza, isto é, cabe entender que classes de indivíduos dela participam, como o fazem e de que modo a relação que estabelecem uns com os outros redunda em desigualdades. Note que o próprio estudo "Working for the few" parte de uma classificação para entender o fenômeno. Fala-se, ali, de “ricos”, vistos como “elites”, “elites globais”, “corporações”, “setor financeiro” e “bancário”; e de “pobres”, identificados com os “sindicatos”, “consumidores” ou “desafortunados”. Isso sugere, primeiramente, uma compreensão relacional da desigualdade, algo para que Antonio David Cattani muito tem insistido. Ou seja uns são muito ricos e outros muito pobres por conta do modo como se dá e mantêm a relação entre ambos. Ocorre que essa relação se dá e mantêm concretamente e mediada, por um lado, pelo trabalho e, por outro, pelo conjunto de regulamentos que norteia política e juridicamente nossas vidas. Nesse ponto é que se colocam as questões relativas ao papel das classes sociais na luta pela redução das desigualdades. Sabe-se, e o documento reforça isso, que nos últimos 30 anos governos nacionais e o setor financeiro têm agido, segundo a expressão de Charles Albert Michallet, em conluio, sendo os interesses do setor financeiro os que pautam boa parte das leis que regem o funcionamento da economia dos países. Do ponto de vista dos trabalhadores, portanto, importa organizar-se e pressionar o Estado de modo a reverter, em plano internacional, essa orientação pró-financeirização da economia, sabendo que isso implica enormes desafios. Do ponto de vista do empresário, a resposta dependerá muito de seu próprio perfil, de saber se e como seus interesses estão associados ao do setor financeiro para saber se, de fato, o problema da desigualdade o inquieta politicamente. A inquietude pode se transformar na luta, por exemplo, por impostos progressivos, pela priorização do gasto social do Estado e melhoria dos serviços públicos, assim como por políticas de valorização do salário.

As soluções propostas no estudo - como a tributação progressiva e regulação financeira - são possíveis sem a intervenção dos Estados e a regulação do direito internacional? Como viabilizar essas soluções se os Estados, como também mostra o relatório, são fortemente influenciados pelo poder econômico que devem regular? Como sair desse círculo vicioso?

Creio ser improvável sairmos dessa situação sem rupturas mais ou menos drásticas. Como bem dizes e procurei apontar anteriormente, há inegável e profunda intimidade entre o poder político e o econômico, em geral, mas particularmente com o setor financeiro. Este, como também se sabe, opera em escala global. Pensa e age de modo a criar em cada Estado-nacional nós de uma teia mundial. Para desatar esses nós, os que por eles estejam sendo subordinados precisarão agir, também, globalmente articulados, num conflito que, em alguns momentos, pode ter a aparência de se travar contra o Estado, mas que a rigor é contra a ordem do capital financeiro. Em alguma medida, movimentos como os que se viu em Seattle e Gênova, no final do século XX, são exemplos do que pode acontecer. Assim como o Fórum Social Mundial, o Ocupe, as Jornadas de Junho, as tentativas iniciais de Bolívia, Equador e Venezuela de resistir ao neoliberalismo, e mais recentemente o que se passa na Grécia e na Espanha.

O estudo mostra que o 1% mais rico ficou com 95% por cento do crescimento pós-crise financeira desde 2009, enquanto os 90% mais pobres ficaram mais pobres. Sabemos que a maior parte desses recursos vieram dos Estados. Como o senhor vê essa realidade do ponto de vista ético e quais podem ser as suas consequências sociais e políticas?

Veja, seria um equívoco imaginar não haver nenhuma ética presidindo as ações que redundam em desigualdade. Há uma ética: é a ética do ganho ilimitado, do gozo ilimitado. Isso significa dizer que essas ações não encontram limites de nenhuma natureza. Seu motor é, precisamente, a negação de qualquer limite, a superação de todo e qualquer constrangimento que controle ou reduza o ganho, o lucro. Há evidentes problemas éticos, políticos e sociais em tal conduta. Primeiro, essa forma de se orientar no mundo tem como principal critério de avaliação o sucesso medido em quantidade de riqueza amealhada. Portanto, os indivíduos que, por assim dizer, possam ser emblemas desse tipo de conduta são admirados pelo que conquistaram, sem que os meios usados para tanto sejam considerados. Eles são transformados em símbolos e, como tais, servem de referência para outros. Sua conduta, porém, implica transformar os outros em objetos. Não importa que suas decisões e atos levem milhares à miséria, à fome e ao desemprego. O que importa é o quanto ganharão. Se imaginarmos que esse individualismo neoliberal pode guiar a vida de muitas pessoas, pois, não esqueçamos, ele nos é ensinado nas escolas, nos meios de comunicação, nas empresas e nas universidades, teremos uma dimensão do que a sociedade pode vir a enfrentar.

Embora tenha havido progressos na América Latina nas últimas décadas, as desigualdades ainda são um grande problema na região, inclusive no Brasil, como mostra a publicação da CEPAL “Cohesión social: inclusión y sentido de pertenencia en América Latina y el Caribe”. O senhor poderia falar sobre essa questão? 

Na América Latina todo avanço parece pouco em relação, primeiro, ao que é necessário para nos tornar menos desiguais entre nós e, segundo, vis a vis os países centrais do capitalismo. Quando falamos de inclusão social e de sentido de pertencimento, vistos como requisitos da coesão social, como faz o documento da CEPAL, o que está em causa é saber como sociedades se mantêm unas, íntegras. Em boa medida, as políticas que redundaram no Wellfare State, no centro, e no populismo, na periferia, buscaram equilibrar as relações entre capital e trabalho, transformando o Estado num protagonista da dinamização do capital. Esse papel, que significou a realização de investimentos em educação, saúde, saneamento etc., assim como o planejamento econômico, foi praticamente liquidado nos últimos 30 anos pelas políticas neoliberais. Falo isso para dar a dimensão do que temos pela frente: na América Latina estamos lutando para nos aproximar de um ponto a que a Europa, por exemplo, chegou na década de 1960. Ocorre que as circunstâncias são outras. Em boa parte dos países europeus, o esforço é para não perder essas conquistas, não para ampliá-las. Retomando um argumento anterior, dificilmente se caminhará o necessário caso não se enfrente o problema do aprisionamento do Estado pelos interesses específicos, particularmente, os interesses das finanças. Talvez seja suficiente mencionar que cerca de 40% do orçamento público brasileiro, em 2014, estavam comprometidos com esse setor. É em nome dele, não das políticas de educação, saúde, renda, saneamento etc., que são adotadas políticas de austeridade e “responsabilidade” fiscal. Em síntese, há como superar o impasse posto para a América Latina, o problema é reunir as forças necessárias para tanto.

Mais do que simplesmente a redistribuição de recursos financeiros, o trabalho é um elemento fundamental para garantir a dignidade das pessoas, porque permite a sua independência e auto-desenvolvimento. O senhor concorda com essa afirmação? Como assegurar uma efetiva igualdade de oportunidades, trabalho decente e salários justos em um mundo globalizado, em que as grandes empresas tendem a explorar a mão de obra mais barata possível?

Sim, concordo com a afirmação. Para responder a segunda pergunta, recorro à resposta anterior. Dificilmente haverá avanços para os trabalhadores sem que ajamos como faz o capital, isto é, articulados globalmente. Do mesmo modo que o grande capital reivindica e se beneficia, por exemplo, de políticas de câmbio flutuante, talvez devamos pensar na necessidade de políticas salariais globais. Sei que isso é problemático, mas vejo pouca probabilidade de avanço se limitarmos nossas ações apenas às questões nacionais. O desafio é, ao fim e ao cabo, o mesmo que estava posto no século XIX quando foi fundada, com enormes dificuldades, a Associação Internacional dos Trabalhadores. Se não caminharmos nesse sentido, nossas iniciativas terão pouco fôlego, pois as grandes corporações e as finanças continuarão fazendo das muitas diferenças que nos caracterizam como nações, gêneros e etnias fontes de dinamização da exploração e da acumulação de capital.

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