Comportamento / Política
  

Índia: violência contra mulheres e minorias preocupa

Os abusos cometidos contra as duas jovens estupradas e mortas em Uttar Pradesh chocaram o país e a comunidade internacional. Cabe ao novo primeiro- ministro Modi acabar com a violência

por Ravindra Chheda - Città Nuova   publicado às 13:20 de 02/06/2014, modificado às 06:53 de 03/06/2014

Foto: Michaklootwijk - Fotolia.com

A notícia e a imagem de duas meninas estupradas e assassinadas em um vilarejo no norte do estado de Uttar Pradesh, na Índia, causou polêmica e trouxe à tona o horror e a violência perpetrada contra as mulheres no sub-continente. As duas primas passaram por um nível de violência sem precedentes antes de serem eliminadas como objetos que não são mais necessários ou que poderiam ser perigosos. Cinco homens foram presos, incluindo três policiais . Não é novidade. Muitas vezes, justamente os policiais são coniventes ou até mesmo protagonistas em primeira pessoa de atos desse tipo.

Nesse caso específico, que ocorreu na aldeia de Karta (distrito Budaun, de Uttar Pradesh), a situação é agravada pelo tratamento recebido pelo pai de uma das meninas. Depois de ser dar conta do desaparecimento e ir até a delegacia de polícia local para relatar o incidente, o homem foi ignorado e sua denúncia foi deixada de lado. Ele relata ter a impressão de que os oficiais "queriam defender o culpado". Ao descobrirem os dois corpos, diante de uma multidão revoltada, a polícia emitiu um mandado para a prisão de sete pessoas, conseguindo capturar cinco.

Este novo caso de violência, uma tragédia horrenda, traz para o primeiro plano a situação de violência aparentemente implacável em que a mulher ainda vive em muitos cantos do mundo e, em particular, na Índia. O problema dessas atrocidades não diz respeito, no entanto, apenas à violência dos homens contra as mulheres. Para compreendê-lo, é necessário levar em conta a divisão de castas que está enraizada no imaginário e na vida dos habitantes das vilas desse o imenso país asiático.

As duas meninas pertenciam a uma família de Dalit, os "sem casta", também chamados "intocáveis". Essa fatia numerosa da sociedade indiana continua a ser colocada às margens,  apesar de a Constituição condenar a "intocabilidade" como um crime. O estigma social permanece até mesmo quando as pessoas desse estrato social mudam o local de residência ou a própria religião. Para todos os efeitos, continuam sendo considerados "marginais", podendo ser submetidas a exploração e violência de qualquer espécie, sem que esses atos sejam punidos.

Para entender a gravidade do problema, basta lembrar que Hillary Mayel escreveu há 11 anos na National Geographic: "A cada duas horas um Dalit é assaltado, a cada dia três mulheres Dalits são estupradas, duas Dalits assassinadas e duas de suas casas incendiadas". As estatísticas são horríveis, mas um colunista do jornal indiano The Hindu afirmou nestes dias que seria necessário atualizá-las, porque houve um desconcertante aumento da violência contra os Dalits.

São dados desse tipo que colocam o novo primeiro-ministro, Narendra Modi, diante de uma situação paradoxal. A Índia é, hoje, um gigante no cenário mundial, o PIB continua a crescer, embora não como alguns anos atrás, a sua importância geopolítica é inegável, a ascenção das classes média e média alta continua inabalável, mas, ao mesmo tempo , o país deve lidar com essas questões que permanecem por centenas de anos. É uma contradição difícil de aceitar e que, sem dúvida, também prejudica o otimismo de Modi e seu agora famoso pronunciamento após o resultado das recentes eleições: "Achha din!" (É um bom dia). Modi encontra-se, desde os primeiros dias de seu mandato, diante do desafio de tranquilizar o mundo sobre a posição da Índia em relação às minorias e aos direitos dos Dalits e das mulheres. A imagem do país está perigosamente comprometida por eventos como aquele de Uttar Pradesh.

O editor do jornal The Hindu destacou, ainda, que na Índia temos a tendência de varrer para debaixo do tapete o problema das castas e, sobretudo, da intocabilidade. Várias medidas que vêm sendo adotadas ao longo dos últimos 50 anos para tentar diminuir o problema gradualmente - por exemplo, reservando alguns lugares nas escola e universidades aos grupos ou comunidades sistematicamente excluídos - têm se mostrado um perigoso bumerangue.  Por um lado, perpetuam a visão discriminatória contra estes estratos sociais e, por outro, causam atrocidades indescritíveis contra eles por parte dos membros de castas mais elevadas, que se sentem privados de direitos consagrados por séculos de tradição e por certos textos considerados sagrados, como o "Código de Manu".

No entanto, mesmo que baseiem-se em conceitos e princípios expressos no referido texto, as razões para as atrocidades cometidas contra os Dalits não podem e não devem ser totalmente atribuídas a ele. No curso das reformas que caracterizaram o período pós-independência da Índia tentou-se dar mais direitos a muitos que não os tinham. Nesse processo, no entanto, surgiram alianças sutis entre os Shudra - a casta mais baixa do sistema, mas superior aos Dalits, que são considerados fora do próprio sistema - e os proprietários de terras, geralmente conhecidos por sua falta de escrúpulos. Essa aliança tem discriminado ainda mais os Dalits, criando novos exploradores, muitas vezes mais cruéis que aqueles que estão nos escalões superiores do sistema. A lei indiana prevê penas exemplares contra aqueles que cometem atrocidades, mas denúncias podem desencadear um violento processo de vingança contra os queixosos ou Dalits de aldeias vizinhas.

O sistema é, portanto, muito complexo e cruel. Um governo como o de Modi, ou de qualquer outra pessoa, não pode pretender desatar, de uma hora para a outra, esses nós milenares. O que poderia ser feito é garantir uma educação adequada nas aldeias e distritos. Somente a educação pode ter resultados, mesmo que em longo prazo,  dado o desafio de transformar mecanismos sociais seculares. Sem dúvida, a ascenção econômica e financeira do país poderia ser colocada a serviço da resolução desses nós. Basta pensar nas grandes famílias de industriais indianos do fim do século XIX e do século passado - os Tata , os Godrej, os Mahindra - que criaram, além de riqueza, serviços comunitários como projetos educacionais e de saúde nas aldeias. O investimento no território do grande boom econômico indiano poderia ser uma resposta sustentável,  embora em prazo muito um longo, a muitas questões críticas que o país enfrenta, como a violência contra os Dalits e as mulheres.