Comportamento
  

“A cracolândia somos nós”

Fundador da Casa do Menor, padre Renato Chiera lança, nesta quarta (27), o livro "Presença no inferno", que relata sua experiência nas cracolândias cariocas. Confira a entrevista

por Daniel Fassa   publicado às 08:48 de 26/08/2014, modificado às 11:39 de 27/08/2014

Padre Renato Chiera, fundador da Casa do Menor. Foto: Divulgação

Desde que deixou a Itália em 1978 para viver em Nova Iguaçu, na baixada fluminense, Renato Chiera tem se dedicado generosamente àquilo que o papa Francisco chamou recentemente "periferias da existência". Indignado com as chocantes privações materias, psicológicas e espirituais que encontrou no violento ambiente que adotou como lar, o padre decidiu fazer alguma coisa. Não podia aceitar que se repetisse a história do Pirata, menino assassinado pelo tráfico na frente de sua casa. Colocou o carro fora da garagem, comprou colchões e cobertores e deixou dormir ali os "sem casa, sem pai, sem mãe, sem amor". Nascia assim, com o apoio de uma vasta rede de solidariedade, a Casa do Menor, que hoje tem cinco sedes no estado do Rio de Janeiro, duas no Ceará e uma em Alagoas.

A partir desse trabalho, Chiera desenvolveu sua "Pedagogia Presença", que se tornou tese de doutorado e foi documentada nos livros Filhos do Brasil (1996) e Presença (2008), editados pela Cidade Nova. A proposta consiste em "sermos juntos presença de amor de mãe e de pai, de família, de oportunidade de cidadania, afim de gerar a presença de Deus-amor ao lado de quem não se sente filho, não se ama e não ama ninguém".
 
Há cerca de dois anos, Chiera decidiu ir ao encontro de outra chaga das metrópoles brasileiras, as cracolândias. Percorrendo as ruas da favela Manguinhos e o entorno da Avenida Brasil, o padre encontrou um "cemitério de vivos", um "inferno na terra", fruto "do crack [quebra] de uma sociedade pós-moderna, que está perdendo o essencial: a relação, o sentido da vida".

É com o intuito de comunicar ao mundo esse "grito por amor" que Chiera lança, nesta quarta-feira (27),  na Bienal de São Paulo, o livro "Presença no inferno". Nesta entrevista, ele fala um pouco sobre a obra, faz uma avaliação da abordagem do Estado e da sociedade em relação às cracolândias e critica a ideia de que descriminalização das drogas seja uma solução para o problema do tráfico e da violência.

Cidade Nova - O senhor vai lançar o livro “Presença no inferno”. Poderia explicar esse título?

Renato Chiera - O título é duplo. O livro em italiano é intitulado “Dall’inferno un grido per amore”, porque eu quis escutar os gritos das cracolândias, que são muitos, são muitas ausências, mas o grito maior é por presença e por amor, por família, por relacionamentos. Aqui no Brasil colocamos o nome “Presença no inferno”, porque eu conheci o inferno, ele existe já aqui na terra e a cracolândia é esse inferno que é fruto e consequência de uma sociedade totalmente fragmentada, onde o ser humano vive exilado, sem casa, sem rumo, sem referenciais de tipo nenhum. Eu chamo a cracolândia de cemitério de vivos que se consolam ou tentam se consolar juntos usando o crack, fumando o crack até morrer. É um cemitério de sombras, são um espelho muito forte do “crack-crack” da nossa sociedade. O crack é o barulho da pedra quando se quebra, a pedra maldita, como eles dizem, a invenção do diabo. Esse crack da pedra me parece o crack de uma sociedade pós-moderna, que está perdendo o essencial: a relação, o sentido da vida. É preciso entrar nesse inferno. Esse inferno existe porque não há presença, porque ninguém é presença para o outro, porque não há relacionamentos trinitários. Esse inferno existe porque a história desses usuários de crack, que são de crianças até velhos, avós, esse inferno clama por alguma coisa de grande. O clamor maior é por presença. As famílias, pai e mãe, a sociedade, os governos, muitas vezes as igrejas, não são mais presença. Deus em Jesus se fez apenas presença sobre a terra, ele é Emanuel, Deus que está conosco sem interesse nenhum, ao nosso lado, só para nos acolher, dizer eu te amo como você é. Então escutamos esse grito muito forte por presença. Eles querem alguém que esteja ao lado deles.

E quantas vezes, quando nós fomos lá, eles se alegraram, correram ao nosso encontro, nos abraçam, e disseram “que bom que você veio, a sua presença é o nosso maior remédio, a sua presença é o maior presente, porque ninguém nos quer, nem a nossa família, nem o nosso pai e a nossa mãe, nem nosso marido e nossa esposa, nem os nossos filhos, nem nosso patrão”. Ninguém os quer, todo mundo os vê como algo que deve ser evitado, escondido ou eliminado, em um trabalho de higienização. A cracolândia é fruto de muitas ausências e a presença fundamental é a presença de relacionamentos de amor com eles. Eles se sentirem acolhidos, amados por alguém: esta é a chave para entrar nesse mundo. Chave que me parece que o governo não entendeu, nas ações que ele faz, de recolhimento compulsório. Não se pode recuperar com violência quem na vida é fruto de somente de violências sofridas desde criança até a vida adulta. A presença é a palavra-chave que nós descobrimos que vale não só para as crianças, mas também para os adultos.

Eu digo que a cracolândia é fruto de um aborto comunitário e agora temos que construir um parto comunitário. Esse parto comunitário é ser presença em nível pessoal, relacionamentos pessoais, mas é presença também em nível de família, em nível de bairro, em nossas cidades, ser útero, um útero que vivifica e alimenta. As Igrejas... lá tem muitos católicos, evangélicos, que encontraram um Deus que não ajudou a sair da droga. A Igreja é esse útero, essa presença que acolhe, que ama? Os governos, as políticas públicas, as políticas sociais, são uma presença? Tudo isso deve ser animado por um amor a essas pessoas. A sociedade em geral não acolhe, só julga, quer eliminar, matar. Nós queremos resolver o problema da violência, das drogas, com violência. Isso não funciona. Daí o motivo do título.

Como o senhor avalia a atuação do Estado diante do problema das drogas? Poderia falar um pouco sobre a realidade no Rio de Janeiro e em São Paulo?

Eu conheço mais o trabalho de onde eu estou. Não quero fazer julgamentos, porque vejo que os governos estão diante de uma problemática tão grande que não têm meios para encará-la. A problemática para nós, no Rio de Janeiro, é vista como um problema de polícia, de segurança pública, então se intervém basicamente como uma presença violenta do Estado, que não entende que precisa estar de braços abertos antes de tudo. Ele faz recolhimentos compulsórios, que são uma derrota, um fracasso. Não devemos recolher, mas acolher. Isso é a base de tudo. As ações que fazemos não são aceitas se não acolhemos. Chegamos nós, os “cracudos” vêm ao nosso encontro e nos abraçam. Chega o governo e eles fogem. Uma assistente social me perguntou por quê. Eu disse, olha, você tem que captar o porque. A gente não vem aqui para tirar essas pessoas, a gente vem aqui para amá-las e muitas delas, por se sentirem amadas por nós, pedem depois para sair.

Agora, no Rio, infelizmente, é visto como um problema de polícia, sobretudo. Então violência, recolher, jogar lá no Rio Acolhedor... Isso não funciona. Foi feita a assim dita pacificação, que é uma tentativa boa para encarar a violência, o narcotráfico, mas estamos vendo que isso está furado, porque está faltando uma alma, está faltando toda a presença de políticas públicas, a presença da polícia de outra forma, a presença do governo de outra forma, não como fiscalizador ou opressor, mas como uma sociedade que dá as mãos. Aquilo que está acontecendo é muito pouco.

O governo de São Paulo, me parece que vê de uma forma mais completa, mas eu não posso muito dizer, porque eu tive pouco contato com a realidade de São Paulo. Parece que estão vendo o problema da cracolândia como um problema de saúde pública. Então estão procurando dar oportunidade de trabalho, eu sei que não está funcionando muito... Porque é difícil, a dependência do crack é uma dependência tremenda. O crack é mais forte do que o instinto materno. Entre crack e filho escolhem o crack. Na cracolândia as meninas perdem os filhos enquanto estão se drogando. Então é uma questão de saúde não só física, mas psíquica, espiritual, é um vazio existencial que se torna também vazio em nível de perspectivas futuras, perspectivas de trabalho, de casa, de dignidade, de cidadania, de ser alguém, de ter protagonismo.

É mais que um problema de saúde então...

É o mistério de uma sociedade que se quebra, que não deve criminalizar a cracolândia, mas ver que essa cracolândia somos nós. A sociedade é o espelho. A carcolândia é o último estágio de uma sociedade que está fazendo um retrocesso civilizatório, que está perdendo valores essenciais. Então, a cracolândia para mim é um presente, duro, trágico, é um observatório a partir do qual vemos aquilo que está acontecendo ao nosso redor e observamos as consequências de uma sociedade que jogou fora os valores, a família, o amor, a solidariedade, a gratuidade, jogou fora Deus, embora se fale de Deus em todo o canto... Mas não é um Deus que dá vida nova. A gente se droga quando a nossa vida é uma droga. Agora, se o encontro com Deus é uma droga também, alienação, que é aquilo que mais acontece... Nós estamos vendo, teologia da prosperidade, Deus como um produto de consumo, é um comércio que nós vemos com Ele... Esse Deus não dá vida nova. Esse Deus entrou numa mentalidade consumista. A cracolândia é fruto de uma mentalidade consumista, a felicidade é o consumo, a sociedade do ter, do prazer... esse é o resultado.

O vazio do ser humano é muito profundo, em todos os níveis. Então é saúde, sim, mas uma saúde globalizada, em todos os seus efeitos. A saúde da família, a saúde das escolas, a saúde do mundo do trabalho, das possibilidades, a saúde de uma sociedade que está fragmentada. A violência é o grito de quem não é amado, é um grito desarmonioso, mas é um grito alto, profundo que quer dizer “eu existo, você não percebe”. Nós é que fazemos uma política muito hipócrita, queremos jogar fora esse mundo como se não fosse o nosso.

O governo deve ser menos orgulhoso. O governo não tem vocação para recuperar pessoas. Além do mais eu soube que nesses dias que tem uma legislação do governo que quer eliminar a dimensão religiosa. Eu digo, claro que não é toda dimensão religiosa que é revificante, eu dou razão a Marx e a Freud em cada afirmação sobre a alienação. Mas a dimensão religiosa é determinante. Uma dimensão religiosa sadia, uma relação com um Deus que me ama como eu sou, é determinante para uma recuperação. Mas não é toda dimensão religiosa, porque há dimensões religiosas que são usadas nas recuperações que são duvidosas. Mas o governo não pode negar essa dimensão, o governo não consegue curar a alma, ele tem dinheiro que poderia ajudar aqueles que têm vocação, ajudar quem tem vocação a desenvolver essa cura holística. Temos que curar tudo, temos que fazer um homem novo e uma nova sociedade.

Então a solução seria fazer parcerias entre Estado e igrejas, sociedade civil etc.?

Hoje a palavra chave é rede. O problema da droga é muito complexo, envolve tudo, envolve não só o indivíduo, mas também a família, a escola, a igreja, a sociedade, os governos. Ou a vencemos essa batalha juntos ou não a vencemos. Então tentamos criar essa rede, em que cada um diz o que pode dar e nos complementamos. Nós no Rio fizemos uma rede antidroga, sugerida pelo cardeal Dom Orani Tempesta, como legado da Jornada Mundial da Juventude. Nós somos atualmente duas ou três entidades e isso está dando uma resposta, não é “a” resposta, mas é uma resposta, um ajuda o outro. Eu reclamo que o governo quer ele assumir... um processo de estatização, como se o Estado fosse tudo. Não, antes a sociedade, a família e depois o Estado deve complementar e ajudar. Se existem na sociedade experiências válidas, sérias, elas devem ser ajudadas. Mas o governo tem uma ação apenas fiscal sobre nós, não acredita no nosso trabalho, uma ação que não permite também dar continuidade ao trabalho.

O problema  não é a droga, é aquilo que levou às drogas. A droga é só uma consequência, o problema é o egoísmo do ser humano, o individualismo, esse é o problema de todos. A primeira coisa então é fazê-los descobrir que são amados. A segunda coisa é ensiná-los a amar. Já que a felicidade não está na droga, não preenche o vazio... A droga e o sexo, porque tem a toxicodependência e a sexodependência, são duas dependências muito grandes e nenhuma preenche. Ensinar a chave da felicidade. Ninguém mais ensina, a família não tem condições, a escola não sabe, as igrejas não sei se ensinam muito isso, muitas vezes são só regras, liturgia etc., o comércio com Deus, mas tem exceções, claro. Então, tem que ensinar a amar, isso para nós é viver como vive Deus, é viver o evangelho... Então é esse treinamento. E depois é o valor da dor... Esses meninos e homens tem histórias terrificantes, então como conviver com essa dor? Só se essa dor tem valor. Temos que ajudar a descobrir o valor da dor. O rosto de Jesus abandonado mostra que a dor leva à vida, mas para isso é necessário que ele assuma a história de dor dele e veja depois como história de ressureição. Uma passagem da dor para a ressureição. A nossa sociedade não quer mais conviver com a dor, ensina a fugir da dor e quanto mais você foge mais você sofre. Então é por isso, a droga não é uma forma pra se consolar. A droga é usada para tornar mais tolerável a vida, a vida é terrível. Eles me dizem, é muito sofrimento padre... E outra coisa é que tem que preencher o coração com ideais, não se dá mais ideais plenificantes, ideais que entusiasmem. Eu digo, olha eu preciso de você pra trabalhar na Casa do Menor para salvar vidas... E eles respondem, “eu, salvar vidas?” E então eles sentem que têm valor. Não fazemos propostas corajosas para eles. Somos medíocres. Nossa sociedade é medíocre, propõe que no máximo você estude e trabalhe para ter dinheiro, para ter uma vidinha boa, burguesa. Essa é a inspiração de todos. Mas isso não preenche. É por isso que na cracolândia tem pobres e ricos, negros e brancos, mulatos, católicos, evangélicos, cultos afros, ateus, tem de tudo... porque o coração humano é infinito.

O senhor acredita que a legalização das drogas seja uma saída viável para o grave problema do tráfico, da violência e da devastação causada à vida dos usuários?

Eu não julgo a boa intenção de alguns, que querem tentar outros caminhos, pensando que vão reduzir o narcotráfico, a violência, o uso das drogas. Mas eu acho que é um raciocínio enganoso. Primeiro, aceitar a legalização das drogas é como aceitar a legalização do mal. É uma forma de derrota da nossa sociedade. É como dizer, matam muitos então vamos legalizar o assassinato, tem muitos assaltos então vamos legalizar os assaltos... Então a sociedade renuncia, não acredita que é possível outro caminho para resolver o problema da droga, do tráfico, da violência. Isso para mim é grave.  Esses são gritos da sociedade, que dizem que algo não vai bem. São gritos que nós devemos ouvir. Outra coisa: a droga leve não existe, porque ninguém fica na droga leve, nós falamos para nos enganar. É uma sociedade permissiva, estão querendo reduzir os danos... É uma sociedade que não tem propostas sérias.

Pergunte aos nossos meninos, a quem se droga, o que eles pensam, aqueles que estão nas casas de recuperação, a quem está nas cadeias... Alguns me dizem, “padre, você é maluco, se o pessoal libera a maconha nós vamos entrar nisso, para nós já é difícil com o cigarro”. Quando eles fumam um cigarro eles sentem que caíram. O cigarro! A bebida! Dizem, “padre, eu recaí”, porque sabem que o cigarro e a bebida são um caminho para a maconha, a maconha é caminho para a cocaína, a cocaína é caminho para o crack. Essas coisas não preenchem o coração e se vai de uma à outra. É uma escalada. Vá à Fazenda da Esperança perguntar o que eles pensam, aqueles que perderam tudo para as drogas dizem que é um caminho inviável, um caminho que leva a coisas muito piores.

Outra coisa que para mim é perigosa é que se dá a impressão de que no fundo essa droga não faz mal, que se pode usar, e isso é muito perigoso porque cria na mentalidade de um menino... “a sociedade não diz que se pode comprar? Então eu vou comprar”. Ninguém tem consciência de que a cerveja, o álcool é um mal, porque se vende, então é normal nas famílias usar isso... As famílias não percebem que ajudaram os filhos a entrarem nas drogas porque beberam, deram cachaça, caipirinha, cerveja... Para mim isso é perigoso. Então se instaura uma mentalidade em que é lícito. Se é legalizado não é mal... Um pré-adolescente se entra nesse caminho não para mais. Quem está lá na cracolândia me diz isso. E quando chegar outra droga mais forte, eles vão experimentar.

Devemos ser mais corajosos, a nossa sociedade, os nossos governos, procurar alternativas. Essas coisas já foram testadas e não tiveram resultados. A redução da idade penal por exemplo. Dizem que vão reduzir porque o tráfico usa meninos menores de 18 anos. Eles vão passar a usar meninos de 10 anos, de 5 anos... Se você legaliza a maconha, o que acontece com as outras drogas? O tráfico continua... Não conheço nenhum menino que ficou só na maconha. Devemos ter mais esperança e acreditar que tem solução, mas são soluções que devem ser vistas em conjunto, soluções que são exigentes, que não são essa permissividade. Devemos ensinar caminhos para a prevenção e para recuperação, devemos investir na prevenção, que não é só dar informações, é ensinar a ser feliz. Se a sua vida é feliz, você não entra na droga, mas se a sua vida é uma droga, você entra na droga, se a sua religião é uma droga, você entra na droga.

Serviço

Lançamento de Presença no inferno: nas “cracolândias” do Rio de Janeiro, de Renato Chiera
Data:
27/08/2014, às 19h30
Local: Auditório Brazilian Publishers da Bienal Internacional do Livro de São Paulo
Endereço: Pavilhão de Exposições do Anhembi, av. Olavo Fontoura, 1.209
Mais informações:  www.bienaldolivrosp.com.br

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