O perdão é luta abençoada

"Naquele dia a alvorada foi mais breve que o normal: o sol surgiu duas horas antes do tempo … E aquele sol prematuramente nascido apresentava uma força admirável: brilhou com o mesmo esplendor que tivera nos seis dias da criação e que voltará a exibir no fim dos tempos".

Na Bíblia – diferentemente do que acontece na civilização do consumo – os nomes de pessoas (e lugares) são uma coisa séria. São sempre escolhidos para indicar, simbolicamente, uma vocação ou um destino. E quando, num evento ou encontro extraordinário, o primeiro nome é substituído, o nome passa a ser também um chamamento para uma missão especial e universal. É assim com Sarai e Abrão: depois da Aliança tornam-se Sara e Abraão; e, após a sua luta noturna, Jacob/Jacó passará a ser Israel.

Reconciliado já com Labão, Jacob/Jacó sabe que terá o encontro mais difícil: o que o espera com Esaú, o irmão que tinha enganado. Mas ele não sabia que antes de poder reencontrar Esaú, um outro encontro extraordinário o esperava na ribeira de Jaboque  (afluente do Jordão). Depois de vinte anos de exílio, Jacob/Jacó tem medo de voltar à terra do irmão. A benção roubada vinte anos atrás acompanhou-o durante o exílio; teme que Esaú não tenha esquecido o engano. Começa por anunciar a sua chegada: “Jacob/Jacó enviou mensageiros a Esaú” (32,4). Veio a saber, porém, que o irmão avançava para ele com quatrocentos homens e “Jacob/Jacó ficou cheio de medo e muito preocupado” (32,8). Esaú temeu e procurando a reconciliação, enviou abundantes presentes ao irmão, para o precederem e prepararem o grande encontro: “duzentas cabras, vinte bodes … dez bois, vinte burras …” (32,15). Esperando: “Se eu mandar à minha frente os presentes para acalmar a sua irritação, quando eu próprio me encontrar com ele talvez ele me faça bom acolhimento” (32,21). São práticas antiquíssimas: as comunidades encontraram-se e reencontraram-se usando presentes como primeiras palavras. A preparação do encontro entre Jacob/Jacó e Esaú é uma das mais antigas histórias que mostram o laço profundo que existe entre o dom e o per-dom. Jacob/Jacó envia dons a Esaú para lhe pedir o dom do perdão. Todo o verdadeiro perdão não é nunca um ato unilateral, mas encontro de dons.

Porém, entre a preparação e o encontro com Esaú o escritor sagrado introduz uma nítida descontinuidade narrativa: conduz-nos ao atravessamento noturno de uma ribeira para nos fazer viver um dos episódios mais extraordinários da Bíblia: Jacob/Jacó, o ‘abençoado por engano’, torna-se o ‘abençoado pela luta’. Jacob/Jacó chega a este encontro noturno com uma grande, complexa, dolorosa bagagem humano-divina. Naquele vau, além dos rebanhos, dos bens, da família, Jacob/Jacó leva também a primogenitura, o prato de lentilhas, o furto da benção, as mentiras que disse ao velho pai Isaac (e a JHWH), os enganos que fez e recebeu de Labão; dores que nele coexistem com o sonho da ‘escada’ e do paraíso, os anjos, a promessa, o chamamento, a Aliança renovada. Acompanhemos então Jacob/Jacó até ao Jaboque, sigamo-lo naquela noite como se fosse a primeira vez que lemos este episódio (só a primeira leitura da Bíblia é fecunda) e combatamos a seu lado.

Durante essa noite, Jacob/Jacó levantou-se para atravessar a ribeira de Jaboque, levando consigo as suas duas mulheres, as duas escravas e os seus onze filhos … Jacob/Jacó ficou para trás sozinho e um desconhecido pôs-se a lutar com ele até de madrugada” (32,23-25). Um homem (“ish”) enfrentou-o enquanto atravessava a vau. Desconhecemos o motivo deste fato, que é apresentado como uma verdadeira emboscada. O homem parece ser um habitante da noite que deve terminar a luta “ao nascer da aurora”. O combate é longo e o misterioso homem não consegue levar a melhor sobre Jacob/Jacó – várias vezes o Gênesis mostra Jacob/Jacó dotado de força extraordinária (cf. 29,10) – e, para enfraquecê-lo, feriu-o ‘abaixo da cintura’, na “cavidade da anca”, fazendo-a deslocar; mas não o venceu (32,26). O adversário pede a Jacob/Jacó: “Deixa-me ir embora que já é de manhã” (32,27). É nesta altura do diálogo-luta que Jacob/Jacó volta a ser mendigo de bênçãos: “Não te deixo ir embora sem primeiro me abençoares” (32,27). O combatente pergunta: “Como te chamas?”. “Jacob/Jacó”. “Desde agora em diante o teu nome não será Jacob/Jacó, mas sim Israel, porque lutaste contra Deus e contra os homens e saíste vencedor” (32,29). Também Jacob/Jacó pergunta o nome ao lutador; como resposta obtém a benção que pedira: "Que interesse tens tu em saber qual é o meu nome? E abençoou-o” (32,30). Na verdade o nome do lutador misterioso já lhe fora revelado: “porque lutaste contra Deus e contra os homens”. O seu adversário era um homem, e era Elohim. Jacob/Jacó foi abençoado e ferido pela mesma pessoa. Estamos perante uma grande metáfora da fé (a fé bíblica, não a dos vendedores de consumos emocionais e psíquicos): a fé é experiência que só ferindo nos abençoa. Ícone notável dos relacionamentos humanos verdadeiros, esta luta (o adversário era também um homem); nela a bênção da alteridade nos é dada quando nos expomos à possibilidade da ferida. Esta luta é ainda uma poderosa imagem das relações humanas na atual sociedade de mercado, nas empresas e organizações, onde se está a perder a bênção do outro porque se tem medo da ferida que ele pode provocar. Entrou-se, assim, numa carestia de bênçãos, de felicidade. 

Mancando, “Jacob/Jacó levantou os olhos e viu que Esaú estava aproximando-se … inclinou-se até o chão sete vezes”. Mas “Esaú correu ao seu encontro e, atirando-se-lhe ao pescoço, abraçou-o e beijou-o e ambos choravam de alegria” (33,1;3-4). Pode recorrer a processos intermináveis, podem vencer inúmeras causas, mas a verdadeira reconciliação se obtém apenas quando se consegue “chorar juntos”. Quem tenha sofrido uma ofensa grave, sobretudo da parte de familiares ou pessoas amadas, sabe que aquela dor não poderá ser compensada por qualquer pena ou indenização: a única cura eficaz para tal ferida é a reconciliação, o abraço. Quando não se chega a “chorar juntos”, a desproporção entre o sofrimento e a compensação é grande demais; e as feridas mantêm-se abertas, não param de sangrar. As lágrimas derramadas por terem assassinado os nossos caros, pelas injustiças profundas de que se foi vítima, pelas calúnias, porque nos roubaram a bênção, apenas poderão ser enxugadas se se misturarem num abraço com as lágrimas de quem as provocou. Bem sabemos, também, que tudo isto é muito difícil; mas sabemos, sobretudo, que não há alternativa para curar as feridas de relações primárias da nossa vida - os processos penais e civis deveriam favorecer a possibilidade destes abraços.

Uma pergunta – entre muitas mais – fica em aberto: porque é que Deus enfrentou e lutou com Jacob/Jacó se ele se encaminhava para recompor a fraternidade? Porque se intrometeu entre Jacob/Jacó e a Sua promessa? Nesta luta podemos descobrir uma das leis mais profundas e menos exploradas da natureza humana. Em um momento decisivo da vida, quem luta com o justo é a sua justiça; com o fundador é a sua obra; com o carismático é o seu carisma; com o poeta é a sua poesia; com o empresário é a sua empresa. E não por perversão ou por maldade intrínseca da vida ou quiçá de Deus, mas porque, quando alguém que recebeu uma vocação e a ela respondeu atinge o ápice moral da sua existência, inevitavelmente se depara com a ‘etapa do nome novo’. Tem que lutar com o que tinha sido a sua primeira missão e a sua benção para, depois da ferida da luta, poder receber outras mais verdadeiras. Jaboque e Jacob/Jacó são nomes que em hebraico têm pronúncia idêntica, quase anagrama um do outro. Durante tais combates, o principal adversário-lutador é precisamente o que de mais belo e maior a vida tem, aquilo que dentro não quer ‘morrer’; e luta e fere: deus contra deum. Mas só quando se passa este ‘vau’ se levanta verdadeiramente voo para o infinito: Raimundo Maximiliano Kolbe torna-se o Padre Kolb e o é para sempre.

No fim da luta, ‘Israel’ recebe a benção de ‘Jacob/Jacó’; compreende e sente que a vida-missão de ontem não era um inimigo a combater, mas um amigo que nos abraça e abençoa; e que com aquela ferida nos abriu acesso à parte mais profunda e melhor de nós. Até àquele atravessamento noturno, a benção de Jacob/Jacó era a que tinha roubado do irmão. Agora que recebeu uma nova benção que é só dele, que para sempre ficará inscrita na sua carne – de acordo com uma tradição rabínica Jacob/Jacó ficou coxo para o resto da vida – agora, pode também ele abençoar Esaú: “aceita, peço-te, a minha benção” (33,11). Fecha-se o círculo. Nós também, como Jacob/Jacó, somos mendigos de bênçãos. Mas hoje corremos o risco de perder a capacidade espiritual de compreender que as grandes bênçãos se escondem dentro das feridas feitas na carne das nossas relações. “Jacob/Jacó chegou são e salvo à cidade de Siquém, na terra de Canaã” (33,18).

Texto originalmente publicado no jornal italiano Avvenire, em 25/05/2014, e no site da Economia de Comunhão. Tradução: António Bacelar.



Sobre

A gratuidade entendida como dom é uma dimensão constitutiva da vida e do ser humano, também do "homo economicus". Virtudes como gratuidade, liberdade e respeito pela pessoa encontram-se nas origens da economia (séculos 8 e 9). Hoje, reintroduzir a gratuidade na economia significa inverter a lógica do lucro para recolocar no centro os mais pobres, a pessoa e suas motivações, sua dignidade, ideais, sentimentos. Neste blog, Luigino Bruni faz uma leitura da economia atual, à luz dessas reflexões. Na primeira série de textos deste ano, intitulada "A árvore da vida", o autor busca explorar as reflexões econômicas e civis suscitadas pelo patrimônio cultural judaico-cristão.

Autores

Luigino Bruni

Professor de Economia Política da Universidade Lumsa de Roma e do Instituto Universitário Sophia. Seus principais temas de pesquisa são reciprocidade, felicidade na economia, bens relacionais, Economia de Comunhão, Economia Civil e Economia Social.