O segredo do verdadeiro sucesso

A filósofa política Jennifer Nedelsky, canadense, professora da Universidade de Toronto, é uma das vozes mais inovadoras na discussão sobre temas relacionados a cuidados, direitos e relações sociais, e está convencida de que, na nossa época, existe uma grande necessidade que, infelizmente, é deixada muito de lado no cenário da nossa vida democrática: o relacionamento profundo entre trabalho e cuidado e, portanto, entre homens e mulheres, jovens e anciãos, ricos e pobres.

Um tema essencial em um mundo no qual temos cada vez mais idosos que, graças a Deus, vivem sempre mais. Sem uma reviravolta coletiva e séria na cultura dos cuidados em relação à cultura do trabalho, a democracia e a igualdade entre as pessoas serão substancialmente negadas. Conheço-a há alguns anos (e por isso nesta conversa que segue, traduzi o inglês “you” com “você”. Encontrei-a na Itália no Instituto Universitário Sophia de Loppiano (Florença). Fiz algumas perguntas sobre temas que acredito que devem ser colocados, hoje, no centro da agenda política e civil do nosso país.

Foto: Helene Souza/Free Images

Por que, na sua visão, existe algo de errado na aquisição de serviços relacionados aos cuidados no mercado, no usar a moeda para que pessoas mais ricas possam “comprar” assistência das mais pobres? No fundo, o positivo do mercado é justamente o encontro entre pessoas diferentes com bens diferentes que podem promover uma troca mútua de vantagens.

 Eu não sou contrária ao mercado de cuidados, de forma alguma. O meu sistema permitiria comprar certa quota de cuidados porque, a meu ver, as mulheres por exemplo, teriam mais tempo livre para os filhos e para trabalhar. A minha proposta é que cada pessoa deve doar tempo para cuidar de si mesma e dos outros. Aquilo que diferencia a minha proposta das outras (penso naqueles que pagam um salário para domésticas) é que gostaria que todos os cidadãos adultos (homens e mulheres, de cada esfera e classe social) se dedicassem a atividades de cuidados gratuitos (ou seja, sem recompensa), gostaria que se ocupassem dos cuidados de si mesmas ao invés de “comprarem”, no mercado, alguém que faça isso por eles, e gostaria que se ocupassem também dos cuidados da própria família, dos próprios pais, e também, das próprias comunidades a que pertencem. Ao menos 12 horas por semana. 

Não esqueçamos também que, por trás do “mercado dos cuidados” há também uma questão entre pessoas e regiões do mundo, no qual quem é mais rico delega trabalhos que não gosta de fazer para os mais pobres. As democracias têm lutado através dos séculos para reduzir ou eliminar a possibilidade de poucos poderosos se disporem das pessoas pobres: hoje estamos reintroduzindo algo parecido, em um neo-feudalismo, no qual o dinheiro tomou o lugar do sangue azul, desenvolvendo essa mesma função de domínio sobre as pessoas. Voltemos às suas horas de cuidados: as 12 horas seriam usadas na família, mas, pelo que entendi, também fora de casa.

Sim, acredito e falo de todos os tipos de cuidados. Se num determinado momento da vida você tem importantes responsabilidades (com crianças, pais anciãos...) talvez naqueles anos os seus cuidados serão doados exclusivamente (ou quase) no âmbito da sua família. Mas quando essas obrigações acabam, você fica livre para se ocupar de cuidados dentro daquele círculo mais largo da comunidade a que você pertence

Gostaria que esse “cuidado para todos” se tornasse obrigatório?

Qualquer regra é obrigatória, mesmo que as formas de implantação e aplicação variem com base no tipo da regra. Aquilo que eu acho muito importante é que a norma que eu proponho (cuidados em tempo parcial para todos e trabalho em tempo parcial para todos) não sejam impostos pelo Estado e suas leis, mas se tornem eficazes devido aos potentes mecanismos de estima e censura social. Dou um exemplo e não o escolho por acaso: devido a normas sociais que vivemos hoje, quanto ao relacionamento homem-mulher, elas fazem uma enorme quantidade de trabalhos não pagos dentro de casa, e isso apenas por causa das normas sociais que são muito eficazes e fundamentais na nossa vida. Isso demonstra que todas as regras causam obrigatoriedade e não apenas aqueles da lei. Deixe-me dar ainda um outro exemplo: se hoje um homem de 30 anos, participa de uma festa e diz que jamais trabalhou e nem tem a intenção de procurar um emprego, recebe uma enorme censura social enquanto, há um ou dois séculos essa condição era sinal de nobreza e estima (e inveja) social. Eu desejo um mundo onde, se você é uma pessoa (homem ou mulher) que ao apresentar-se numa festa diz que “nunca trabalhou e nem pretende trabalhar”, você termine simplesmente por envergonhar-se devido à censura dos outros. E o mesmo deveria acontecer se você dissesse: “Não tenho tempo para cozinhar, para passar, nem para me ocupar dos meus pais, nem da minha comunidade porque tenho um trabalho muito importante que ocupa todo meu tempo”. Devemos logo chegar a dizer que essas vidas só de trabalho e nada de cuidados são vidas socialmente imaturas, que não merecem nossa consideração. Portanto, superá-las assim como superamos a ideia de nobreza associada a renda e não ao trabalho.

Parece-me evidente que uma mudança cultural dessa tenha que começar não apenas da família, mas também da escola.

Sim, estou refletindo muito sobre a escola. Tenho certeza, por exemplo, que antes de formar-se, um jovem, deveria ser capaz de planejar seu menu semanal, conhecer os custos do mesmo, saber onde fazer as compras e como cozinhar aquilo que compra. Toda pessoa adulta deveria saber fazer essas coisas e não confiá-las somente ao mercado ou às mulheres, mesmo porque ninguém tem o direito de pensar que outros poderiam fazer essas coisas em seu lugar.

Nos seus livros você propõe algumas mudanças importantes nos postos de trabalho.

Com certeza. Acredito que são dois aspectos principais que estão entrelaçados. O primeiro é a igualdade entre os sexos. Nós estamos vivendo uma fase de grande estresse familiar. Mas tem algo que não ressaltei o suficiente: os policy makers [aqueles que elaboram as políticas públicas] são, normalmente, pessoas que não fazem e não trabalham no ramo dos cuidados. São geralmente ignorantes...

Diz isso porque são ricos ou porque são homens, ou as duas coisas?

São ignorantes em relação a estas dimensões fundamentais da vida humana. Dessa forma, estabelecem as políticas de cuidados e do bem-estar sem terem a experiência do dia-a-dia. Então, temos que eliminar ou reduzir a lacuna entre quem vive concretamente o cuidado e quem faz as leis sobre eles e, portanto, arrumar de novo tanto os lugares de trabalho quanto as normas relacionadas ao cuidado. Naquilo que diz respeito ao trabalho, eu gostaria que ninguém trabalhasse mais que trinta horas na semana. E quanto ao cuidado, que nenhum adulto fizesse menos de 12 horas de cuidado na semana. Todos têm que doar cuidado e ninguém pode ficar em casa desempregado, e todos tem que ter um trabalho assalariado, sendo que até mesmo um trabalho em tempo parcial deve significar um "bom" trabalho (todos os direitos, salários apropriados, etc.). Por isso a expressão "part-time" [meio período] tem que ser revista, não pode ser entendida como é entendida hoje, mas como um novo modo de viver o trabalho, um novo "trabalho full time" para todos, junto com o cuidado. Mas, eu repito, acredito numa mudança cultural. Se você disser a alguém: "O meu trabalho de médico ou de engenheiro é, realmente, importante e tenho que trabalhar 80 horas por semana", as pessoas deveriam dizer: "Você não é um bom doutor, nem um bom engenheiro". O trabalho demasiado (e a falta do cuidado) deveria deixar de ser considerado um elemento de estima e ser visto como um fator de culpa.  

É como dizer que seria necessária uma mudança da ideia de "estima social", que teríamos que inventar um conceito muito mais amplo da estima profissional. Teríamos que estimar os trabalhadores que são também pessoas capazes de fazer outras coisas além do trabalho, principalmente de cuidar de si mesmos e dos outros. Concordo plenamente. Mas você não acha que existem trabalhos que naturalmente exigem muito empenho e muitas horas de trabalho para se alcançar a excelência (medicina, ciência, política, sacerdotes, esporte…)?

O meu sistema permite poder desenvolver a excelência, com certeza. Se você é um cientista e está conduzindo um experimento complexo, pode e deve trabalhar até 12 horas num dia e 90 numa semana. Existem muitos trabalhos que exigem períodos muito intensos. Mas depois você tem que recuperar, e tirar uns dias livres. As minhas trinta horas são uma média indicativa de longo período. Mas ninguém deve poder dizer: "O meu trabalho é muito importante, e outra pessoa tem que lavar as minhas meias".

Portanto, a sua é uma crítica ao capitalismo atual?

Sim e não. Eu gostaria que o meu sistema fosse aplicado logo, não só numa hipotética sociedade diferente. Com certeza eu estou preocupada com o nosso capitalismo financeiro, principalmente pela sua desigualdade. Pensemos no "gap" crescente entre os salários nas nossas grandes empresas, numa falência econômica, mas também política e moral. Não foi sempre assim. O capitalismo conheceu salários muito menores dos altos-gestores e tinha mais democracia. Portanto, introduzir 12 horas por semana gratuitas para todos seria uma estrada eficaz para aumentar a democracia e a igualdade verdadeira entre as pessoas.

Mas temos que estar conscientes de que o nosso capitalismo hoje está indo para a direção oposta: nos EUA as horas de trabalho semanais já são de 47-48 em média. Eu gostaria de uma mudança cultural na família, nas empresas, na política. Mas logo, começando agora a nos educarmos a uma ideia diferente de excelência, que se alargue para a nossa capacidade de amar, de cuidar dos outros. Ao invés de dizer: "Você um excelente doutor", começar a dizer: "Você é uma pessoa excelente, porque além de trabalhar, você cuida de si mesmo e da sua comunidade". Excelência na vida, e não só no trabalho.

É como se você nos convidasse a buscar um novo florescer humano "relacional".

Sim, uma nova ideia de "sucesso" ou de "florescimento humano" é aquilo de que estamos precisando, onde o trabalho e o dinheiro sejam redimensionados e os critérios de sucesso sejam muitos. Mas não quero abandonar o trabalho: eu amo o meu trabalho e espero que sempre mais pessoas possam trabalhar seguindo a própria vocação e também ter tempo para fazer as tantas outras coisas de que gostam

Texto originalmente publicado no jornal italiano Avvenire, em 4/10/2014, e no site da Economia de Comunhão.

Tags:

sucesso, trabalho, relacionamentos, cuidado, amor, jennifer nedelsky, universidade de toronto, cultura



Sobre

A gratuidade entendida como dom é uma dimensão constitutiva da vida e do ser humano, também do "homo economicus". Virtudes como gratuidade, liberdade e respeito pela pessoa encontram-se nas origens da economia (séculos 8 e 9). Hoje, reintroduzir a gratuidade na economia significa inverter a lógica do lucro para recolocar no centro os mais pobres, a pessoa e suas motivações, sua dignidade, ideais, sentimentos. Neste blog, Luigino Bruni faz uma leitura da economia atual, à luz dessas reflexões. Na primeira série de textos deste ano, intitulada "A árvore da vida", o autor busca explorar as reflexões econômicas e civis suscitadas pelo patrimônio cultural judaico-cristão.

Autores

Luigino Bruni

Professor de Economia Política da Universidade Lumsa de Roma e do Instituto Universitário Sophia. Seus principais temas de pesquisa são reciprocidade, felicidade na economia, bens relacionais, Economia de Comunhão, Economia Civil e Economia Social.