Filme sobre Yoani Sanchéz é retrato da intolerância à brasileira

Um pouco antes das primeiras manifestações de massa no Brasil, aquelas dos “20 centavos”, a blogueira cubana Yoani Sánchez veio ao país. Era começo de 2013 e o circo que se armou em torno da visita projetou um cenário de acirramento ideológico que não se via há algum tempo por aqui. Não que ele não existisse; só não clamava por apelo público. Com os protestos que se sucederam, a realização da Copa do Mundo, as eleições de 2014 e as marchas do “Fora Dilma”, vimos explodir vozes radicais por todos os lados. Com ajuda das redes sociais, claro

A viagem de Yoani. Foto: Divulgação

Se há um grande mérito no documentário A Viagem de Yoani, ele está justamente em captar o berreiro que se formou na passagem da jornalista por algumas capitais, como Salvador, São Paulo e Brasília. Todos falam, ninguém se escuta. O exemplo de democracia à brasileira: o que vale é se impor. Para quê dialogar? Até o ex-senador Eduardo Suplicy, símbolo da mais pura mansidão, saiu do sério com os manifestantes esquerdistas. Mas é ele quem diz a mensagem mais profética: “Aqueles que são a favor do fim do bloqueio contra Cuba, precisam saber que a vinda de Yoani Sanchéz ao Brasil é um passo importante! Vocês não querem ouvir! Vocês só ficam na gritaria e não sabem ouvir. Isso não é democracia. Ela não é a favor do bloqueio! Você não leu as coisas que ela escreveu!”

Quando o filme começou a ser rodado, em 2009, Yoani ainda estava presa à ilha. Para viajar, era necessário conseguir uma autorização do governo cubano. Algo impossível para uma das principais vozes contrárias ao regime totalitário dos irmãos Castro. Seu blog já fazia sucesso no mundo todo. Foi nessa época que os diretores Peppe Siffredi e Raphael Bottino foram entrevistá-la. Era, inicialmente, a construção de um perfil de uma jovem articulada e corajosa. Com a sua vinda ao Brasil, em 2013, o documentário ganhou outro caráter: Yoani havia se transformado num imã de inquietações políticas de parte da sociedade brasileira.

Sem didatismos ou posicionamentos, a câmera vaga por este ambiente hostil que ronda a blogueira. Ela ouve de tudo. Jovens – quase sempre vinculados a organizações de esquerda -  levantam cartazes e improvisam cânticos de guerra, tais como “Cuba sim, Yoani não. Viva Fidel e a revolução!” e “Bolsonaro ela abraçou, para CIA trabalhou. Yoani é só caô”. Quando possível, atende a imprensa com habilidade e defende os argumentos sobre o fracasso do governo cubano e a necessidade de se conquistar a plena liberdade. As perguntas são quase sempre as mesmas. Ela não parece cansada.

O filme é exemplar: costura a algazarra brasileira com os pensamentos de Yoani e a repercussão que seu trabalho tem gerado na imprensa cubana e mundial. De um lado, ela é uma impostora financiada pelos EUA; de outro, uma heroína da democracia. A temperatura das teses e teorias da conspiração fazem parecer que estamos em plena Guerra Fria. Ao final, tudo soa ridículo e anacrônico.

No dia da estreia de A Viagem de Yoani, na última quinta-feira (23), pude conversar com os dois diretores. Me impressionou essa fidelidade deles ao cinema. Não se trata de um filme político, em primeira instância. É só combustível para constituição de um registro extraordinário. Somos impactados pelo clima de suspense, a trilha bem acabada, as intersecções gráficas. Tudo serve à história a ser contada. Ainda que documental.

Com Yoani, o Brasil começou a se revelar no espelho. E o pior: até agora só apareceram as deformidades.

 

 

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Pitacos, reflexões e provocações sobre música, cinema, jornalismo, cultura pop, televisão e modismos.

Autores

Emanuel Bomfim

Emanuel Bomfim nasceu em 1982. É radialista e jornalista. Escreve para revista Cidade Nova desde 2003. Apresenta diariamente na Rádio Estadão (FM 92,9 e AM 700), em SP, o programa 'Estadão Noite' (das 20h às 24h). Foi colaborador do 'Caderno 2', do Estadão, entre 2011 e 2013. Trabalhou nas rádios Eldorado, Gazeta e América.