Como o mundo gira

Roberto Saviano. Foto: Divulgação

Napolitano, jornalista, escritor, 35 anos, preso em liberdade. Esse é Roberto Saviano, mundialmente famoso por ter escrito Gomorra, um best-seller que já superou 10 milhões de cópias vendidas mundo afora. Saviano teve a coragem de investigar e denunciar a Camorra, a máfia napolitana, dando nome aos bois. A todos os bois. Quem leu o livro ficou sabendo nome, sobrenome e endereço dos maiores boss da região. Além de conhecer suas atividades, suas fontes de renda, suas práticas violentas e assassinas. Precisa ter estômago para ler, ele descreve com detalhes as execuções, pois o tipo de morte, a posição do morto, tudo tem um significado. É um aviso, uma recomendação: quem agir dessa forma terá o mesmo fim. Para falar de Saviano e do que ele escreveu depois, é impossível não falar de Gomorra, que aliás virou filme e teve seu roteiro premiado pelo cinema europeu em Cannes.

Gomorra transformou Saviano de um jornalista em um escritor. De um jovem pouco conhecido, em alguém de renome. De homem livre em prisioneiro pelas próprias mãos, ou melhor, pelas próprias palavras. Há mais de oito anos o escritor foi condenado à morte pela máfia: vive recluso, em endereço desconhecido e com forte esquema de segurança.

Por conta da vida que é obrigado a viver – e dos sacrifícios que impôs à sua família – Saviano não esconde o seu arrependimento. Queria falar a verdade, mas admite que errou a mão, que não se protegeu com uma certa dose de prudência que hoje vê como uma alternativa possível à época. Numa entrevista recente ele desabafou: “É duro o exílio. Gostaria de retornar a uma Itália diferente e livre. Sinto experimentar a diáspora dos italianos que deixam o país para viver melhor”.

O seu livro mais recente, publicado pela Companhia das Letras, é menos aterrador que Gomorra ou A beleza e o Inferno, outra obra sua de fôlego. É Zero Zero Zero. Trata-se da cocaína de melhor qualidade, a mais pura: 000. Dessa vez Saviano mergulha nas redes internacionais do narcotráfico, cujo centro é a América Latina. Descreve o ciclo colombiano e a passagem do centro do tráfico da Colômbia para o México. E aí encontramos a explicação para o enorme recrudescimento da violência no país dos astecas. Há também um detalhamento de como o Brasil se enquadra nesse esquema.

Mas a América Latina é simplesmente o ponto de origem. Desse pecado ninguém se salva: passa-se pela África, pelos vários países da Europa onde a máfia siciliana se confunde com a napolitana, a calabresa e a russa: a mafija. Se alguém até então não viu atrocidades suficientes, a mafija não deixará ninguém desapontado.

Saviano alerta: “É preciso entender onde nascem os gemidos do planeta Terra contemporâneo, suas rotações, seus fluxos, seu sangue, sua ferocidade, seu percurso inicial. O que vivemos hoje, a economia que regula nossas vidas e nossas escolhas, é mais determinado pelo que Félix Gallardo ‘El Padrino’ e Pablo Escobar ‘El Mágico’ decidiram e fizeram nos anos 1980 do que pelo que decidiram e fizeram Reagan e Gorbatchóv. Pelo menos eu penso assim”.

O livro é sério, não é um romance para desanuviar. É um relato documentado de como o mundo gira. Pelo menos de como gira ao redor da droga. E aí descobre-se que a droga faz girar muito mais do que dinheiro. “Entender os destinos de uma eleição política, a queda de um governo” – relata Saviano (p.85). “Escutar as palavras oficiais começa a não ser mais suficiente. Enquanto o mundo tem uma direção bem precisa, tudo, no entanto, parece se concentrar em algo diferente, talvez banal, superficial. A declaração de um ministro, um acontecimento minúsculo, a fofoca. Mas quem decide tudo é outra coisa”.

Mas aí entraríamos na política e começaríamos uma outra história. Essa fica para outro livro.

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Sobre

No início da Era Cristã, toda a informação que uma pessoa conseguia assimilar durante a vida era inferior ao que está à disposição dos leitores numa edição de domingo de um jornal como O Estado de S.Paulo. É patente a evolução exorbitante do acesso à informação e da multiplicação do conhecimento. A literatura, antes restrita a uma exígua elite de pessoas letradas, continua sendo o canal por excelência para o conhecimento e passou por uma enorme democratização: hoje está ao alcance de todos. Vamos explorar juntos esse admirável mundo feito de “tinta sobre papel” ou de “pixels sobre tela”.

Autores

Fernanda Pompermayer

Formada em jornalismo pela Famecos (PUC-RS) em 1985, há seis anos trabalha na revista Cidade Nova. Foi repórter, editora e atualmente é editora-chefe da revista. Cursou ciências humanas, socais e teológicas no Instituto Internacional Misticy Corporis em Florença (Itália) e no cantão de Friburgo (Suíça).