Para que não se repita

O julgamento de Nuremberg (novembro de 1945 a outubro de 1946) assombrou a humanidade ao tornar públicos primeira vez os horrores perpetrados pelo nazismo. As provas documentais (fotos, filmes, depoimentos) inéditas chocaram, revoltaram, abalaram o planeta. Hoje, após 70 anos da campanha judaica “para não esquecer”, Aushwitz e Dachau são nomes conhecidos até por crianças e, felizmente, continuam fazendo as pessoas se arrepiarem pelo que representaram. Graças a Deus. Dá até para pensar que, enquanto esse sentimento existir, estaremos alertas para que essa barbárie não se repita.

Vítimas do nazismo. Foto: Wikimedia

Mas o sinal vermelho se acendeu. Há perigo! Outras imagens de atrocidades se renovam na sua crueldade: a imigração dos povos do Norte da África e do Oriente Médio que chegam desesperadamente e clandestinamente à costa da Itália, expulsos de suas terras pela fome, pela perseguição religiosa e pelas guerras.

Da Itália, país que ainda não se recuperou da crise de 2008 e que patina para permanecer na zona do euro, uma leva de pessoas desesperadas se espalha pela Europa em busca de trabalho e refúgio. A Itália é só uma porta de entrada.

Acabo de ver na tevê cenas de uma verdadeira caçada humana. Parecia filme nazista. Mas não era filme. Era reportagem. Informava que o governo britânico aprovou novas medidas de controle da entrada de estrangeiros ilegais no país. Essa política foi defendida pelo primeiro-ministro David Cameron na sua campanha à reeleição e foi uma das bandeiras que o reconduziu ao cargo.

Na tevê, enquanto o repórter Informava que, pelas novas leis, qualquer pessoa que abrigasse ou alugasse imóvel a um desses estrangeiros poderia pegar até cinco anos de prisão, a câmera mostrava a revista de uma casa por policiais armados: cômodos, armários, subterrâneo, alçapão, tudo foi varrido até capturar um homem e levá-lo preso para depois expulsá-lo do país.

Refugiados em Calais tentam entrar na Inglaterra. Foto: Flickr

Na cidade litorânea de Calais, na França, milhares de imigrantes tentam o ingresso no Reino Unido pelo Eurotunel, que atravessa o Canal da Mancha. Aí também vale tudo: cães farejadores, cassetetes, violência explícita. Só faltou o uniforme da SS. Daí para “eliminá-los” só falta mais um passo. Exterminam-se milhares de gatos na Austrália e de esquilos nos EUA para manter o equilíbrio do ecossistema. Tenta-se eliminar a presença de novos habitantes na Europa para manter o equilíbrio financeiro do continente.

Melhor não brincar com fogo... Quando judeus, ciganos, homossexuais e até cidadãos alemães com deficiências eram exterminados aos milhares, corriam vozes, na Europa, de que algo nefasto, macabro estava acontecendo. Foi preciso a guerra acabar e contarem 6 milhões para que alguém fosse verificar se havia algo verdadeiro naqueles boatos.

Revoltada, me questionei: será preciso relembrar, reviver, nos deixarmos escandalizar? A Europa fica a milhares de quilômetros. O que podemos fazer? Podemos nos indignar, sentir revolta, assumir uma posição de não aceitação, assinar petições do Avaaz, usar as redes sociais, fazer barulho. Postagens esdrúxulas viralizam com rapidez e facilidade incríveis. Não podemos nos acostumar, achar normal, nos imobilizarmos pela grandiosidade do problema e pela repetição com que ele se apresenta no noticiário.

Muita gente se chocou e milhares – eu também! – assinaram documentos pedindo maior controle da preservação da fauna africana dias atrás, quando Cecil, o leão-símbolo do Zimbábue foi cruelmente assassinado. Está certo. Tem que reagir mesmo. Mas agora há uma outra causa em questão: estamos tratando pessoas, pessoas que estão sofrendo, e muito, pior do que animais.

Recomendo a leitura de É isto um homem? (Rocco, 1988), do italiano Primo Levi. O livro é considerado pela crítica “o mais belo livro já escrito sobre o Holocausto”. Foi publicado na Itália ainda em 1947, logo depois de Nuremberg.

Nascido em Turim, numa família judaica, Primo Levi foi o prisioneiro número 174.517 do complexo de Auschwitz de janeiro de 1944 até o fim da Guerra, em 1945. Pouco mais de um ano. O suficiente para destruir uma vida e uma alma. Mas Levi sobreviveu e escreveu, ainda em 1945, pela “necessidade de contar ‘aos outros’, de tornar ‘os outros’ participantes de uma experiência única e, esperemos, irrepetível”.

O centro da narrativa é a essência humana, seja refletindo sobre a degradação a que foram submetidos os prisioneiros, seja sobre a miséria moral que leva um ser humano, no caso dos nazistas, a infligir voluntariamente tamanho sofrimento a outros seres humanos.

Primo Levi. Foto: Wikimedia

Vocês que vivem seguros em suas cálidas casas,

Vocês que, voltando à noite, encontram comida quente e rostos amigos,

Pensem bem se isto é um homem, que trabalha no meio do barro,

Que não conhece paz, que luta por um pedaço de pão,

Que morre por um sim ou por um não.

Pensem bem se isto é uma mulher, sem cabelos e sem nome,

Sem mais força para lembrar,

Vazios os olhos, frio o ventre, como um sapo no inverno.

Pensem que isto aconteceu: eu lhes mando estas palavras.

Gravem-nas em seus corações,

Estando em casa, andando na rua,

Ao deitar, ao levantar-se, repitam-nas a seus filhos.

O Dr. Pannwitz termina de escrever e olha para mim. (...) esse olhar não foi cruzado entre dois homens. Se eu soubesse explicar a fundo a natureza desse olhar, trocado como através do vidro de um aquário entre dois seres que habitam dois mundos diferentes, conseguiria explicar a essência da grande loucura do Terceiro Reich.

Ao ecoar essa música, sabemos que os companheiros, lá fora, na bruma, partem marchando como autômatos; suas almas estão mortas e a música substitui a vontade deles; leva-os como o vento leva as folhas secas. Já não existe vontade; cada pulsação torna-se passo, contração reflexa dos músculos destruídos. Os alemães conseguiram isso. Dez mil prisioneiros, uma única máquina cinzenta; estão programados, não pensam, não querem. Marcham.

Dos 650 judeus italianos levados a Auschwitz junto com Primo Levi, apenas 20 sobreviveram.

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Sobre

No início da Era Cristã, toda a informação que uma pessoa conseguia assimilar durante a vida era inferior ao que está à disposição dos leitores numa edição de domingo de um jornal como O Estado de S.Paulo. É patente a evolução exorbitante do acesso à informação e da multiplicação do conhecimento. A literatura, antes restrita a uma exígua elite de pessoas letradas, continua sendo o canal por excelência para o conhecimento e passou por uma enorme democratização: hoje está ao alcance de todos. Vamos explorar juntos esse admirável mundo feito de “tinta sobre papel” ou de “pixels sobre tela”.

Autores

Fernanda Pompermayer

Formada em jornalismo pela Famecos (PUC-RS) em 1985, há seis anos trabalha na revista Cidade Nova. Foi repórter, editora e atualmente é editora-chefe da revista. Cursou ciências humanas, socais e teológicas no Instituto Internacional Misticy Corporis em Florença (Itália) e no cantão de Friburgo (Suíça).