"A pessoa com deficiência precisa ser amada, respeitada e incluída".

Vencedora de prêmio “torcedor do ano”, da Fifa, a palmeirense Silvia Grecco narra no estádio jogos para o filho, que é autista e possui deficiência visual

por Emanuel Bonfim   publicado às 00:00 de 19/11/2019, modificado às 14:45 de 19/11/2019

Silvia Grecco
Mãe do Nickollas e torcedora do Palmeiras

A ASSISTENTE SOCIAL Silvia Grecco nunca imaginou que um dia fosse precisar de um assessor de imprensa. Achava até meio descabido. “Juro que não sou celebridade”, se desculpa para a reportagem de Cidade Nova antes do início da entrevista. “Nunca pensei que um assessor pudesse ser tão essencial na vida de uma pessoa.” S

ilvia até pode não se considerar uma personalidade, dessas de televisão ou da internet, mas tem tido uma agenda equiparável a de um artista ou figura pública. O motivo, por sinal, é dos mais nobres: contar sua história com seu filho Nickollas. Eles foram descobertos pelo repórter da TV Globo Marco Aurélio Souza, durante um clássico entre Palmeiras e Corinthians. Estavam na arquibancada e Silvia narrava os lances da partida para o Nickollas, que possui deficiência visual e é autista.

A partir de então, aquele gesto de amor de uma mãe para com um filho ganhou notoriedade mundial, a ponto de eles receberem um prêmio dentro do The Best, concedido pela Fifa aos melhores do ano.

“Ele nos viu com os olhos e nos enxergou com o coração”, declarou Silvia em discurso para a plateia recheada de craques da bola durante a entrega do prêmio, em Milão, na Itália. Silvia não alimentava o desejo de propagar sua voz, mas, a partir da projeção do prêmio, quer aproveitar esse palanque para falar sobre a invisibilidade da pessoa com deficiência. Quer, também, como você poderá ler na entrevista a seguir, falar sobre a doação de uma mãe que supera obstáculos aparentemente impossíveis. Tudo a partir do amor e, claro, do futebol. 

O que você tem conseguido colher a partir dessa grande exposição com o prêmio? 
 

Fiquei muito feliz com o prêmio físico, lógico. Foi uma grande emoção na minha vida, que vai estar na minha memória afetiva eternamente. Mas entendi o quanto nós éramos invisíveis, porque são sete anos de estádio, muitas vezes sentados no mesmo lugar. Nem as pessoas ao nosso redor nos viam. Quando tudo isso acontece, começo a me perguntar por que era desse jeito. Para mim, é uma coisa corriqueira, nunca tivemos vaidade, nunca fizemos isso para mostrar para ninguém, é uma coisa íntima, minha e de meu filho. Uma história de amor, de cumplicidade. Mas pensei: “Está na hora de mostrar para as pessoas que a pessoa com deficiência existe mesmo e que ela precisa ser amada, respeitada, incluída”. E já que nos deram voz, tento passar essa mensagem para todo mundo.

E como o Nickollas tem absorvido todo este momento, com toda essa visibilidade?  
 

Até por conta da própria deficiência, do autismo, ele não tem a dimensão da grandiosidade do evento, mas o absorveu com grande emoção também. Entendeu tudo o que aconteceu, porque expliquei passo a passo, como era a premiação, os outros que estavam concorrendo, o porquê da nossa indicação... Para ele, além disso tudo, foi uma festa gigantesca, com a oportunidade de conhecer os ídolos de que ele gosta, como o Messi. Ele ficou bem emocionado, tirava fotos, pulava. Hoje, explico para ele, já que somos muito assediados e muitas pessoas querem tirar fotos: “Nickollas, você tem seus ídolos. Quando você está perto do Dudu, do Deyverson, do Weverton, você não quer tirar fotos e abraçar? As pessoas gostam de você também. Não é triste se eles falassem que não?” Ele responde: “Não quero isso”.  Então, ele leva muito de boa. Abraça todo mundo, tira foto com todos.

A reunião com a CBF já foi um primeiro desdobramento concreto do prêmio?
 

No dia da premiação, fui apresentada ao presidente, o Rogério Caboclo, e manifestei: “Presidente, embora eu ache que esse não seja o melhor momento, gostaria tanto de um dia falar a respeito da oportunidade de outras pessoas com deficiência  curtirem os jogos.” Ele falou para mim: “Então vamos inverter, eu vou te convidar para você falar”. E cumpriu, tanto que nessa semana me ligaram e nós fomos até lá.  Caboclo estava visivelmente emocionado, o que eu achei muito bom, pois demonstrou interesse real. Mostrou que não era nada midiático, muito menos demagógico. Demonstrou interesse pela causa, pela possibilidade de fomentarmos a cultura da paz, de o Nickollas levar os amigos dele com deficiência, [torcedores] de outro times, ao Brasileirão. Se Deus quiser, em breve, nós estaremos nos estádios brasileiros levando outras crianças com deficiência para ter a oportunidade que meu filho tem de assistir aos jogos.

Falta acessibilidade nos estádios do país?
 

O Palmeiras, com o Allianz Parque, até recebeu selos de acessibilidade, não só do Brasil, porque ele tem acessibilidade arquitetônica e de comunicação. Quando entramos lá para uma partida, tem uma pessoa que nos leva até o nosso local. No intervalo, eles vêm perguntar se, por acaso a mãe precisa ir ao banheiro e se quer que alguém fique com o filho. Eles se predispõem a isso. Depois, nos levam até o carro. Acredito que a grande maioria dos estádios não tenha essa acessibilidade. Ou, então, há estádio que coloca todas as pessoas com deficiência juntas num mesmo lugar. Isso não é inclusão. Inclusão é elas ficarem no meio dos torcedores.

Como você, com o tempo, foi desenvolvendo a técnica da narração? Você prestava atenção em como os narradores de rádio e TV faziam?

A primeira vez que eu levei o Nickollas a um jogo, Palmeiras X São Caetano, no Pacaembu, ele tinha cinco anos. Levei, nesse dia, fones de ouvido e os colocava no rádio, sintonizado na emissora que transmitia o jogo, para ele ouvir. Mas o Nickollas os tirava, pulava muito com a emoção da torcida e saía pelo estádio gritando “porco!”. Todas as vezes, eu colocava os fones, e ele os tirava e ficava com a torcida. Aí, comecei sutilmente a falar sobre as jogadas. Exemplo: “Olha, Nickollas, o Dudu está com a bola agora e passou para o Bruno Henrique”. Mas falava assim, normal, contando a jogada. Ele começou a gostar e pedia para eu falar mais. Fui falando e começou a ser uma narração mesmo. Fui me aprimorando depois, até ouvindo na rádio outros narradores, na parte técnica, como tiro de meta, escanteio, para também falar nesses termos. Fui aprimorando, chegando a esse status de narradora, mas com a emoção de mãe, de torcedora, que xinga o juiz, fala um monte de palavrão (risos). Ele sabe que no estádio pode. Não tem jeito (mais risos). E falo muito perto do ouvido dele. Outra coisa: a hora do gol é a parte mais emocionante, mas também não posso cantar o gol antes da hora, que é uma cultura de todos os times, porque dá azar. Confesso que agora a história do VAR (sigla em inglês que significa árbitro assistente de vídeo) tem me deixado muito irritada.

Além de conhecermos essa sua linda história no estádio, tem outro aspecto que muito emociona:  essa sua experiência foi fruto de uma outra doação sua, a adoção. Como foi esse processo? 

Tenho uma filha, Marjorie, hoje com 32 anos, que é muito querida. Um dia, sentamos eu, ela e meu ex-marido, e eu disse: “Tenho muita vontade de ter outro filho, mas por meio da adoção”. Nós conversamos muito e chegamos à conclusão de que isso seria uma maravilha. Então, fui à Vara da Infância e Juventude e me inscrevi, porque queria fazer a coisa legalmente. Lógico que vinham aquelas histórias de que era burocrático e demorado. No entanto, depois que fiz minha inscrição, entendi que não era bem assim. Eles fazem uma análise do seu perfil para saber se você está querendo realmente adotar, se é um ato de amor ou se você está querendo fazer uma caridade pontual. Então, vasculham “o emocional” da gente para ver se estamos preparados. E a demora não é tão grande para quem não faz escolhas absurdas - porque tem pessoas que querem a menininha, recém-nascida, de preferência loira de olho azul.

Isso é estatística no Brasil, você pode olhar: tem muito mais pessoas que querem adotar do que crianças que são adotadas, pois aquelas crianças que estão no abrigo, que já são um pouco maiores e têm irmão, acabam preteridas. Então, me inscrevi e, numa sexta-feira, a juíza me chamou e disse: “Olha, doze casais já abriram mão dele e agora é a sua vez de conhecê-lo, conhecê-lo no hospital porque essa criança teve algum problema no nascimento. Na segunda, se der tudo certo, você vem falar comigo”. Então, fui. Quando cheguei lá, o médico colocou o Nickollas no meu colo. Ali eu já senti que o nosso coração estava entrelaçado. Na hora, eu tive essa sensação. Ele contou todo histórico do Nickollas: ele nasceu de 5 meses, de uma gravidez interrompida, o que lhe deixou muitas sequelas, além de ter tido uma parada cardíaca que quase o levou a óbito. Disse, ainda, que o bebê teve muita força para viver. Essa coisa das sequelas, nada disso me abalou. A única coisa que perguntei é se ele tinha chances de morrer logo, porque não estava preparada para perder um filho. O médico respondeu que não podia dar essa garantia, mas que o Nickollas era um lutador: nascer com meio quilo e chegar aonde ele chegou, é porque ele quer muito viver. No sábado, minha família já estava no berçário visitando-o. Na segunda, a casa estava toda enfeitada. Aí, fui para o fórum e disse sim. Parecia que, naqueles dois dias, eu tinha vivido os nove meses de gestação.

Como você renova essas energias para ter toda essa dedicação ao Nickollas?
Eu amanheço todos os dias e agradeço aos meus filhos, porque eles me dão força para levantar. Ele me inspira em tudo, embora eu trabalhe a semana inteira e tenha que cuidar dele no fim de semana também. Às vezes chega o domingo e penso: “Será que vou conseguir?” É um amor transformador, que move mesmo.  Vou dizer mais: se ele torcesse para outro time, eu estaria lá da mesma forma. O esporte em si é transformador, e para a pessoa com deficiência, acredito ainda mais nesse poder transformador.  O que me leva a fazer tudo isso é esse amor que tenho pelo Nickollas, que é uma coisa muito forte. Tem uma frase de uma música que levo comigo e é real: “Não há você sem mim e eu não existo sem você.”


Emanuel Bomfim

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