Sociedade / Comunicação
  

Pessoas sinceras demais para este início de século

Texto escrito por Gustavo Monteiro para a Oficina de Crítica e Ensaio do curso "Formação do Escritor" da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RIO)

por Gustavo Monteiro   publicado às 00:00 de 05/05/2023, modificado às 11:26 de 05/05/2023

Lembra quando virou meme? A frase “não sou capaz de opinar” foi repetida diversas vezes, comicamente e corajosamente, por Glória Pires durante a cobertura brasileira da cerimônia do Oscar de 2016.

Corajosa porque vai na contramão da cultura da internet. De política externa à história da igreja, queremos ser especialistas em tudo, sem saber um tubo sobre qualquer coisa.

Cômica porque não é o que se espera de alguém que foi convidado a dar opiniões sobre um determinado assunto, ao vivo, para milhares de outras pessoas.

Aos 20 e poucos anos, assim como aos 60, você não precisa saber tudo. Tampouco opinar. As centenas de mensagens curtas de “opiniões verdadeiras” sobre todas as coisas podem, inclusive, ofuscar o valor da mensagem, o valor das próprias coisas.

Venhamos e convenhamos ainda: começar a frase com “não sou capaz”, em rede nacional, me parece extraordinário. Em um mundo multifuncional em que nós não só podemos como devemos saber e ser milhares de coisas ao mesmo tempo, admitir com tranquilidade a própria incapacidade é genial. Não sou capaz.

Mas existe ainda uma forma mais fina, uma maneira elegante de rebelião contra a cultura do barulho. Em silêncio, não ser capaz nem mesmo de dizer não ser capaz. E fazer isso porque, com a consciência tranquila, entender que não é preciso.

É inclusive a partir de um outro meme que se pode exemplificar como funciona essa última categoria de corajosos. Leandro Beninca tinha uma voz esganiçada, típica de quem se despede da infância e entra sem jeito na pré-adolescência, quando filmou com um tablet o seu primo Marcos descendo a ladeira da casa da avó Salvelina em um carrinho de madeira improvisado.

A frase “Taca-lhe pau, Marco! Taca-lhe pau nesse carrinho!”, que tinha sido dita com sotaque gaúcho carregado como uma brincadeira entre dois primos, se popularizou de uma maneira absurda: virou música e comercial de Fórmula 1.

Aos 12 anos, Leandro já tinha ido a todos os programas de auditório das principais emissoras de TV brasileiras e dado entrevistas à maioria das emissoras de rádio do Sul do país. Tinha ido em turnê com a sua banda preferida de cultura gaúcha, a Fogo de Chão, e juntado uma boa poupança para o futuro.

Mas a rotina de mil beijos e selfies depois de cada show, além de ter que repetir, como quem faz uma xérox com sempre menos tinta, a frase “taca-lhe pau” em cada um desses encontros com os fãs, acabou por descortinar ao garoto o verdadeiro gosto (insosso) da fama.

“Eu prefiro ser normal”, disse o menino, já estudante do ensino médio a noite, ajudante de eletricista de dia e garçom em uma pizzaria aos fins de semana, ao podcast “Além do Meme”, do Chico Felitti. Em tempos em que todos são mini celebridades e vivem em busca do seu lugar à luz da lâmpada, ou da tela que seja, se reconhecer desimportante é joia rara. O paradoxo tá aí.

“Ele não tem nenhum talento”, diz a mãe, referindo-se à fama, em um determinando momento da entrevista. O que poderia soar ofensivo, na verdade, é dito com ternura. E o Leandro, jovem homem de poucas palavras, se sente muito bem com isso. Vida normal que segue. Sem precisar defender ou refutar a fama, a menos que um entrevistador paulista bata à sua porta numa tarde de domingo.

Em sentido diametralmente oposto, outra celebridade de meme, com muita sinceridade, não tem a menor vergonha de dizer que persegue a fama mesmo, faz isso porque gosta. Ela não tem o menor pudor de revelar todas as suas estratégias para continuar na mídia há mais de 10 anos, continuar aparecendo, e, preferencialmente, ganhando dinheiro com isso.

Cariúcha, a perdedora do concurso “Garota da Lage”, transmitido pelo Profissão Repórter, teve o seu “barraco” filmado e veiculado em rede nacional, pela Globo. “Eu sou bonita pra caramba! Eu sou toda natural, eu não tenho estria, meu peito é duro! Isso aí é tudo cotada! Mas pode fazer bom aproveito desse carro usado! O meu é zero! Hahaha!” foram as frases imortalizadas ali. E tem gringo aprendendo português repetindo isso.

Também entrevistada pelo Além do Meme, do Chico Felitti, uma Cariúcha cativante e humana se revela. Cai por terra qualquer tipo de preconceito com uma funkeira de periferia, participante de um concurso de beleza, e sobra uma mulher generosa e, acima de tudo, autêntica. Nasceu para ser famosa e não tem nenhum problema com isso. Se realiza assim. Teve uma oportunidade na vida para alcançar o seu objetivo e se agarrou com unhas e dentes a essa chance, sem esperar que o raio caísse no mesmo lugar outra vez, e sem fingir que, para isso, não havia esforço.

Já se percebeu fingindo que não quer aquilo que você realmente deseja, com medo de um julgamento externo que, no fim das contas, vem mais de você mesmo do que de qualquer outra pessoa? Cariúcha não. Ela é capaz de entrar de penetra na festa de famosos e dividir o copo com a aniversariante como um degrau para uns 5 minutinhos a mais de refletor. E não tá nem aí! Ou melhor: é assim que está aí, em todo lugar, pelo menos nos perfis de fofoca de famosos.

“Isso de ser o que se é ainda vai nos levar além”, escreveu o Paulo Leminski. E ser o que se é começa com a sinceridade. Não importa se o seu ideal é ter uma vida pacata no interior ou estar no foco da maior quantidade de câmeras possível. O que é preciso mesmo é reconhecer aquilo que se quer e ser aquilo que se é. E fazer isso em paz. Com a tranquilidade de reconhecer que fazer isso é o melhor para você e, consequentemente, para tudo o que é vivo ao seu redor.

Mas para “ser o que se é” e se realizar fazendo o que se sente de fazer (como dom mesmo, como missão até) é preciso um mínimo de tempo. É preciso parar. Dentre as milhares de solicitações e notificações de celular, em algum lugar para além do feed infinito do Instagram, é preciso se reconhecer como alguém capaz de tomar decisões, mudar a rota das coisas, ou de continuar empurrando com a barriga a mesma roda de sempre, mas fazer isso com consciência.

Sinceridade é como o pedaço de madeira que boia depois do naufrágio do Titanic na sociedade líquida (e repetidamente citada) do Bauman. E, apertando um pouco mais, dá pra caber todos nós!