Começar de novo

Seja por razões financeiras, profissionais ou pessoais, a mudança de carreira na fase adulta pode significar a diferença entre dar ou não um novo sentido à própria vida

por Luís Henrique Marques   publicado às 00:00 de 06/08/2019, modificado às 14:59 de 06/08/2019

Mudar de carreira profissional quando se alcançou a maturidade dos 40 ou mais anos não é tarefa fácil. Nem todo mundo tem coragem sequer de tentar. Mas uma coisa parece certa: em grande parte dos casos, essa medida é vital para dar sentido novo a uma existência que pode estar marcada pelo desânimo, quando não pela angústia, o que costuma gerar problemas de saúde emocional e física. Isso, sem falar nas dificuldades financeiras que uma atividade profissional malsucedida costuma gerar. O fato é que passamos a maior parte de nosso dia – e, portanto, de nossa vida – envolvidos em atividades laborais, o que tem implicação direta em nossa realização pessoal.

É o que mostra a experiência da Luciane Cury, de Bauru (SP). Hoje, ela é chef confeiteira, profissão pela qual se diz apaixonada, mas cuja descoberta só aconteceu aos 45 anos de idade. “Sinto muito não ter descoberto a gastronomia antes”, declara Luciane. De fato, “muita água rolou debaixo da ponte” até acontecer seu encontro com que hoje considera “sua arte”.

Filha de uma família humilde, Luciane começou a trabalhar cedo. Somente aos 23 anos conseguiu ingressar no ensino superior para cursar serviço social. “Se eu gostar, fico; se não gostar, saio”, disse para si mesma na ocasião. À época, ela trabalhava em banco e acreditava que o curso superior poderia alavancar sua carreira. Luciane, no entanto, se surpreendeu positivamente com o curso. Desligou-se do banco e, por indicação de uma professora, iniciou o trabalho na área da assistência social, no âmbito do atendimento a crianças vítimas de maus-tratos.

Mas a experiência durou pouco: logo veio o casamento e, no ano seguinte, o nascimento do filho. A gravidez de risco e a decisão de dedicar-se inteiramente aos cuidados do pequeno Leonardo a afastaram de vez da assistência social. Luciane reconhece também que, embora tivesse se encantado com a área, o trabalho lhe trouxe decepções: burocracia, lentidão e um sentimento de impotência diante de situações complicadas típicas do trabalho com pessoas social e economicamente vulneráveis. Mesmo assim, chegou a pensar em continuar essa atividade. Porém o fato de ter ficado alguns anos fora do mercado de trabalho e a necessidade de continuar cuidando do filho, ainda pequeno, sepultaram de vez seu retorno ao serviço social.

Depois desse período, Luciane montou uma loja de alimentos naturais (empreendimento que durou três anos) em parceria com o marido. “Porém é muito complicado ser esposa e sócia ao mesmo tempo. Por isso, para salvar o meu casamento e estando nossa empresa organizada e caminhando, resolvi mudar e assumir uma antiga paixão: a culinária”, conta. Assim, aos 45 anos, decidiu cursar gastronomia.

Para Luciane, foi um reencontro com a própria infância, quando já demonstrava ter vocação para cozinhar. “Cresci nas cozinhas das minhas avós e, por isso, acredito que a arte de preparar alimentos sempre esteve na minha genética”. Mesmo reconhecendo que não foi fácil voltar à sala de aula aos 45 anos, é categórica ao falar sobre seu encontro com a gastronomia: “Foi maravilhoso!”. A nova profissão a levou a fazer diversos cursos, inclusive na França, e lhe permitiu ter uma rotina intensa de trabalho e criatividade. Recentemente voltou à sala de aula do curso superior de gastronomia, agora como professora. “Uma expe­riência nova e gratificante”, garante. 

Questão de equilíbrio

Experiências como a de Luciane Cury são cada vez mais comuns. Essa é a análise da psicóloga Tatiana de Oliveira Carvalho, especialista em psicopedagogia e mestre em Psicologia na área de Desenvolvimento Humano no Contexto Sociocultural. As principais razões desse fenômeno estão ligadas à instabilidade econômica, às frustrações de uma opção profissional equivocada e à busca de satisfação real e plena na atividade laboral. “Antigamente, era comum pessoas abrirem mão de sua real vocação profissional para assumirem uma atividade que lhes trouxesse estabilidade financeira e/ou lhe garantisse prestígio social”, argumenta Tatiana Carvalho. “As pessoas associavam uma carreira­ de sucesso com aquela que lhes fosse capaz de garantir o emprego numa mesma empresa durante muitos anos.” Hoje, esse paradigma foi quebrado e muitas pessoas se permitem refletir sobre as próprias opções profissionais.

Segundo a psicóloga, para além da garantia de emprego e conforto material, cresce a exigência de exercer uma atividade que combine satisfação pessoal com seu significado e valor social.

O desequilíbrio entre essas exigências está entre as razões para uma contínua frustação no trabalho. Carvalho explica que parte dessa crise pode ter raízes mais profundas, relacionadas a escolhas profissionais malfeitas no início da juventude. Aos 18 anos, nem sempre o jovem consegue discernir a área de atuação que seguirá para o resto da vida.

A especialista critica, ainda, o imperativo do curso superior como único paradigma de realização profissional. Ela também considera que os bancos escolares não são capazes de auxiliar os jovens nessa escolha. “A escola tem ficado para trás enquanto o jovem tem acesso a muitas informações. O problema é que nem sempre ele sabe o que fazer com essas informações, não consegue refletir com clareza e acaba fazendo opções a partir de idealizações ou mesmo fantasias.”

Missão no mundo

A transição de carreira não precisa ser necessariamente brusca, mas pode ocorrer natural­mente ao longo do tempo. Em alguns casos, circunstâncias particulares podem levar a essa necessidade de mudança. A questão é como lidar com isso. É frequente as pessoas perceberem a necessidade de redirecionar a própria carreira apenas em razão de crises e sofrimento vividos no ambiente de trabalho ou na vida pessoal. Carvalho afirma que, nesses casos, é preciso antes identificar o que está na base do sofrimento.

Vânia Aparecida Martinez, de São Paulo, é jornalista formada, função que exerceu durante 17 anos. Em razão de cobranças familiares, deixou de lado a profissão para também ajudar o marido na condução de uma empresa familiar. O desfecho desse empreendimento foi bastante difícil e resultou no encerramento da empresa. Com isso, ela ficou cinco anos fora do mercado de trabalho e se viu sem chance para voltar ao jornalismo. “Perdi o chão”, diz. Para sobreviver, fez bolos para fora. Embora não tivesse vocação para a confeitaria como Luciane, se deu bem. Mas esse não era ainda o seu lugar e papel no mundo. Em à meio crise que vivia, interessou-se pela medicina tradicional chinesa e conhecimentos afins. Não buscava um negócio novo, apenas desejava “melhorar como pessoa”. Mas acabou encontrando também uma nova profissão.

Vânia conta que, ao se especializar na área da medicina tradicional chinesa, descobriu um talento para a massoterapia. “Nunca me imaginei massagista; descobri um talento que não sabia possuir”, revela.

 

Luís Henrique Marques

 

*Matéria originalmente publicada na Revista Cidade Nova, em Maio de 2018