Chiara, ano 100

1920-2020 Um século atrás, nascia uma mulher que, só por adotar Deus como ideal de sua vida, fundou um movimento católico que ultrapassou as fronteiras da Igreja, alcançou até os não crentes e trouxe contribuições para a cultura

por Airam Lima Jr   publicado às 00:00 de 21/01/2020, modificado às 13:27 de 21/01/2020

ESTE ANO, Chiara Lubich completaria cem anos no dia 22 deste mês de janeiro. No entanto, o legado da fundadora do Movimento dos Focolares é tão vasto que, sob esse aspecto, pode-se dizer que Chiara está viva em seus seguidores e em sua obra, que vai muito além da Igreja Católica, de onde partiu.

A italiana Chiara sempre foi profundamente católica. Sua primeira intuição sobre o movimento a que ela daria impulso veio em uma visita a um santuário mariano em Loreto (veja na linha do tempo), mas sua primeira descoberta da nova espiritualidade deu-se mesmo em Trento, sua cidade natal, em 1943.

A localidade era destruída pelos bombardeios da Segunda Guerra Mundial. Diante de tantas vidas e tantos sonhos desaparecidos em um instante, Chiara e suas amigas se perguntaram: existe um ideal que não morre, que nenhuma bomba pode destruir? “Sim, Deus”, foi a resposta. “Decidimos fazer dele o ideal da nossa vida”, relataria ela anos mais tarde.

Trinta e cinco anos depois, com o Movimento já consolidado, Chiara abriu um escritório para o “diálogo com pessoas de convicções não religiosas”. Não houve surpresa nesse anúncio. Desde os anos 1970, já havia contatos com ateus, agnósticos ou indiferentes que compartilhavam os objetivos do Movimento.

Assim, Chiara contava com pessoas que negavam ou não reconheciam a existência daquele que era seu ideal de vida. Isso sem falar nos contatos que os Focolares já mantinham com membros de outras igrejas cristãs, como luteranos e anglicanos, e de outras religiões, como judeus, muçulmanos e budistas. 

“A UNIDADE É NOSSA VOCAÇÃO”

A explicação para esse paradoxo vem de outra descoberta que viria a fundamentar a espiritualidade focolarina, também ocorrida em Trento, em 1943, debaixo de bombardeios. Como sempre acontecia nesses momentos, Chiara e suas companheiras correram para o abrigo antiaéreo levando somente o Evangelho. Abriram o livro e encontraram a passagem do Evangelho de João em que Jesus pede a Deus: “Pai, que todos sejam um”.

O desejo de Jesus virou, para aquelas moças, uma ordem. “Aquelas palavras nos punham no coração a certeza de termos nascido para aquela página do Evangelho”, resumiria Chiara em 1997. Num livro de 1985, ela seria ainda mais explícita: “A unidade é a nossa vocação específica”. Portanto, o Movimento dos Focolares se caracteriza também por adotar uma espiritualidade comunitária, em que as pessoas caminham juntas, nunca isoladamente. 

Não muito tempo depois, outra descoberta revelaria àquelas moças a “chave” para chegar à unidade. Certo dia, um padre disse a Chiara que o momento de maior sofrimento de Jesus foi quando ele gritou na cruz: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?”. Impressionada por essas palavras, Chiara concluiu: “Se a maior dor de Jesus foi o abandono por parte do seu Pai, nós seguiremos Jesus abandonado”. A partir desse momento, ele passou a ser o único esposo da vida de Chiara.

Deus como ideal, a unidade, Jesus abandonado... Essas foram apenas três de uma série de “descobertas espirituais” que Chiara fez junto com suas companheiras. Em Trento, todos os sábados à tarde, a comunidade era convidada para ouvir Chiara falar de suas descobertas e experiências.

Dessa forma, em 1945, já havia cerca de quinhentas pessoas que aderiam a essa espiritualidade, algumas delas propondo-se também a seguir a estrada de consagração total a Deus escolhida por Chiara e suas primeiras companheiras.

No verão de 1949, essas moças viveram um período de forte experiência mística de compreensão do seu percurso espiritual, que chamaram de “Paraíso de 49”. Os textos produzidos durante esse período iriam tornar-se, com o tempo, material de formação espiritual e objeto de estudo de teólogos e outros cientistas.

“A VIDA É PRODUZIDA COM A MORTE”

O Paraíso de 49 serviu também como uma preparação para uma década de grandes contrastes que viria a seguir. Por um lado, todos os anos Chiara e suas companheiras passavam o verão nas montanhas trentinas e cada vez mais simpatizantes as acompanhavam.

Chiara percebeu que aí surgia, temporariamente, uma pequena cidade fundamentada nos preceitos do Evangelho, e chamou-a Mariápolis ou “Cidade de Maria”. Em 1959, último ano de encontro naquela região, passaram pela Mariápolis mais de 10 mil pessoas, entre as quais alguns brasileiros.

Em paralelo, o crescimento do Movimento despertava a atenção da Igreja. Então, os bispos italianos iniciaram uma investigação rigorosa sobre aquelas moças, pois o Movimento não se encaixava nos padrões das associações leigas da época, a começar pela liderança feminina. Recordando o contexto histórico, à época, ainda não acontecera o Concílio Vaticano II e, para muitos católicos, “unidade” era só o nome do jornal do Partido Comunista...

Chiara foi convocada pelo Santo Ofício para vários interrogatórios. Com cada um deles, vinha o temor de que fosse decretada a dissolução da Obra nascente. De fato, em 1960, uma comissão da Conferência Episcopal Italiana recomendou o fechamento dos Focolares. Essa foi uma das maiores experiências de Jesus abandonado que ela viveu. “Nós o sabemos: a vida se paga; a vida que, por meio de nós, chega a muitas almas, é produzida com a morte”, escreveu. Mesmo assim, em nenhum momento Chiara deixou de confiar na Igreja.

“UMA ESPIRITUALIDADE UNIVERSAL”

Finalmente, em 1962, o Movimento foi aprovado pelo papa S. João XXIII, com o nome de Obra de Maria. Desde então, todos os papas e muitos bispos apoiaram o trabalho de Chiara. Além de comparecer a vários eventos, S. João Paulo II visitou o Centro Internacional do Movimento em 1984. Mais recentemente, em 2018, Francisco esteve na cidadela permanente de Loppiano (Itália).

Em outro paradoxo desta história, enquanto o Movimento sofria restrições na Itália, começava a se expandir para outros países. Em 1958, os primeiros focolarinos chegaram ao Brasil; em 1967, o Movimento chegou ao último continente que faltava: a Oceania.

Dessa maneira, em todo o mundo, foram se reproduzindo as Mariápolis. Primeiro, como encontros-laboratórios de cidadezinhas evangélicas; depois, a partir de 1964, como cidadelas permanentes, “faróis sobre o monte”, diria Chiara, de sociedades movidas pela lei do Amor. No Brasil, nasceram três, em São Paulo, Recife e Belém.

Com o passar dos anos, percebeu-se que a espiritualidade da unidade pode ser benéfica não somente para a Igreja, mas para toda a humanidade. Essa constatação veio também da sociedade. Chiara recebeu, em menos de dez anos, dezesseis títulos de doutora honoris causa e dezessete de cidadã honorária em vários países do mundo.

“Esta espiritualidade comunitária não está ligada necessariamente ao Movimento dos Focolares: ela é universal e, portanto, pode ser vivida por todos”, resumiu Chiara em 1996. “De fato, através dela foram abertos diálogos fecundos com todos os homens, inclusive com fiéis de outras religiões e com pessoas das mais diversas culturas, que encontram os valores em que creem postos em relevo, e juntos nos encaminhamos para a plenitude de unidade à qual todos tendemos”.

 

Linha do tempo – De Trento para o mundo

22 de janeiro de 1920

Nasce em Trento, norte da Itália, Silvia, a segunda de quatro filhos da família Lubich, tão unida quanto diversificada: o pai, tipógrafo, é socialista; a mãe, católica fervorosa; o irmão mais velho, médico, jornalista e comunista.

 

1938

Conclui o curso de Magistério. Passa a trabalhar como professora.

1939

Participa de um encontro de estudantes católicas em Loreto, onde fica o santuário que abriga a casa onde teria vivido a Sagrada Família de Nazaré. Contemplando o local, tem a primeira intuição de que ela percorreria uma “quarta estrada” na Igreja (nem religiosa, nem casada, nem solteira).

1943

Participa da Ordem Terceira Franciscana e, seguindo o hábito dessa obra, adota o nome de Chiara (em português, Clara), em homenagem à santa de Assis.

7 de dezembro de 1943 

Consagra-se totalmente a Deus com um voto de castidade. Sobre esse momento, ela dirá: “Desposei Deus”. Chiara nem de longe pensa em fundar algum movimento, mas logo algumas de suas amigas (Natalia, Dori, Giosi e depois outras) desejam compartilhar com ela suas descobertas e seu modo de vida.

13 de maio de 1944 

Um violento bombardeio atinge Trento, inclusive a casa da família, que se vê obrigada a sair da cidade. Chiara, porém, permanece, para sustentar o grupo que estava nascendo ao seu redor. Mais tarde, vai morar, com suas primeiras companheiras, em um apartamento na Piazza dei Cappuccini (Praça dos Capuchinhos). Assim nasce o focolare.

 

1947 

Primeira aprovação diocesana do nascente movimento, por dom Carlo De Ferrari, arcebispo de Trento. “Aqui tem o dedo de Deus”, reconhece ele.

1948

Encontra em Roma, no parlamento italiano, o deputado, escritor, bibliotecário e jornalista Igino Giordani, pai de quatro filhos. Ele se tornará o primeiro focolarino casado. Chiara lhe dará o nome de Foco e o considerará cofundador do Movimento pela sua contribuição decisiva para a encarnação da espiritualidade da unidade na sociedade e para o desenvolvimento do diálogo ecumênico.

Julho de 1949 

Com suas companheiras, vai passar alguns dias de férias nas montanhas trentinas, e ali tem um período de iluminação particular sobre a ação de Deus na espiritualidade e no movimento que estavam nascendo.

1950 

Convida Pasquale Foresi – então com apenas 21 anos – para compartilhar com ela a responsabilidade de coordenar o Movimento. Ele será o primeiro focolarino sacerdote. Chamado Chiaretto por Chiara, Foresi será também considerado cofundador da Obra, pois contribuirá para a redação dos Estatutos do Movimento, para o nascimento da revista e da editora Città Nuova (Cidade Nova) e para o surgimento das Mariápolis permanentes. Além disso, ele será o primeiro a estudar o impacto da espiritualidade da unidade na teologia e nas ciências humanas.

1954 

Funda os setores dos sacerdotes diocesanos e dos religiosos. Depois dos focolarinos, esses são os primeiros de uma série de ramificações e movimentos da Obra que irão surgir ao longo dos anos seguintes, voltados para todas as idades e vocações, das crianças aos bispos.

1977

Em Londres, recebe o Prêmio Templeton para o Progresso da Religião (o mesmo recebido no ano passado pelo físico brasileiro Marcelo Gleiser).

 

 

1990 

Com a colaboração de dom Klaus Hemmerle, bispo de Aachen (Alemanha), inaugura a Escola Abbá, um centro de estudos multidisciplinar para traduzir em doutrina a espiritualidade da unidade.

1991

Na Mariápolis Araceli (hoje Mariápolis Ginetta), perto de São Paulo, lança a proposta da Economia de Comunhão.

1996

Em Nápoles (Itália), com um grupo de políticos de diferentes partidos, lança o Movimento Político pela Unidade. Recebe o título de doutora honoris causa em Ciências Sociais da Universidade de Lublin (Polônia). Até 2004, ela irá receber outros quinze títulos desse tipo, em diferentes disciplinas.

1998

Faz sua última visita ao Brasil. Recebe a Ordem do Cruzeiro do Sul, pelo empenho em favor das classes mais carentes e pela promoção da Economia de Comunhão.

2007

É criado o Instituto Universitário Sophia, com sede na Mariápolis permanente de Loppiano (Itália). É o último ato oficial firmado por Chiara.

14 de março de 2008 

Depois de três anos de uma debilidade progressiva, morre em sua casa, em Rocca di Papa, nas cercanias de Roma.

2015 

O bispo de Frascati (Itália), dom Raffaelo Martinelli, abre a causa de beatificação e canonização de Chiara Lubich. Desde dezembro de 2019 o processo está no Vaticano.

 

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Chiara Lubich, Focolares, trento