Cogovernança: modelo de gestão participativa

Embora embrionários, exemplos de um governo democrático, com a contribuição direta e articulada em rede por parte dos cidadãos, apontam para um caminho de desenvolvimento das cidades em que a dignidade humana é o seu objetivo central

por Web Master   publicado às 00:00 de 21/02/2020, modificado às 15:26 de 21/02/2020

Desde o início do seu governo, a administração do prefeito de Cachoeirinha, na região metropolitana de Porto Alegre, Volmir José Miki Brier (PSB), adotou três iniciativas cujo objetivo é fazer com que a gestão municipal mantenha um contato direto com a população de pouco mais de 118 mil habitantes, de modo a melhor atender as demandas dos cidadãos.

A primeira delas – chamada Gabinete da gente – consiste na abertura do gabinete do prefeito todas as quartas-feiras, das 7h30 ao meio dia, sem marcação de agenda, para qualquer cidadão que quiser fazer sua reclamação, sugestão ou pedido à administração. “Se o prefeito tem alguma agenda fora, atende o vice ou outra pessoa que o represente, mas em quase a totalidade das vezes, pude ficar à disposição da população”, conta Miki Brier, como é mais conhecido. 

Outras iniciativas da cidade são o Prefeitura com a gente, ação realizada quinzenalmente, aos sábados, quando o prefeito e sua equipe de secretários visitam algum bairro da periferia para ouvir as pessoas, e Diálogos com a cidade, live semanal de uma hora, veiculada geralmente às quintas-feiras pela página do Facebook da prefeitura (https://www.facebook.com/prefeituradecachoeirinha/), quando o prefeito, o vice e um dos secretários municipais conversam on-line com a população.

Segundo Miki Brier, com essas iniciativas, ao menos parte das demandas dos cidadãos foram agregadas ao planejamento estratégico da prefeitura,  e elas se tornaram espaços para a administração manter-se próxima à população, proporcionando um retorno pelas demandas levantadas. “Estamos aprendendo com a população”, afirma o prefeito de Cachoeirinha. 

Essa experiência – a despeito dos resultados concretos que a administração oferece, de fato, à população – já aponta para um modelo de gestão pública que, embora não seja novidade, parte de um conceito que hoje, para muitos especialistas, melhor corresponde a processos mais democráticos de governo: a cogovernança.

Essa foi, inclusive­, a temática do congresso intitulado Co-governance, realizado no final de janeiro, no Centro Mariápolis de Castel Gandolfo, em Roma, e que reuniu 400 participantes, entre administradores públicos, políticos, empreendedores, acadêmicos e re­presentantes da sociedade civil de 33 países. A promoção foi do Movimento Humanidade Nova, Movimento Político pela Unidade (MPpU) e Associação Cidades pela Fraternidade, expressões de compromisso político e social do Movimento dos Focolares. Essa foi a primeira edição do evento que, em 2021, será realizado no Brasil.

Para os participantes do congresso, a cidade­ é o espaço adequado para o exercício da cogovernança. “As cidades às quais nos referimos são entendidas aqui como lugar de convivência e de pertencimento em todas as suas múltiplas formas, de megalópoles às áreas rurais”, afirma o documento intitulado Pacto para uma nova governança, elaborado ao final do evento. 

Segundo o texto, as cidades “são casa para mais da metade da população mundial, uma proporção destinada a crescer ainda mais, atravessadas por todos os desafios da humanidade, dos desequilíbrios sociais aos conflitos étnicos, dos problemas ambientais à afasia democrática”. Por isso, os especialistas e profissionais reunidos em Castel Gandolfo apontam para a importância política e cultural estratégica das cidades, as quais, mediante a prática de novos processos democráticos de gestão, “podem se tornar espaço de experimentação para transformar medos, fraturas sociais e conflitos em oportunidades geradoras de respostas locais e/ou globais”.  

Oficinas pelas Cidades Fraternas

O conceito de cogovernança não limita o protagonismo de uma gestão pública da cidade apenas aos administradores. De fato, esse conceito só tem valor se aplicado por qualquer cidadão, conforme atesta a experiência do aposentado e empreendedor social Júlio Carneiro, de Taguatinga (DF).

“Em junho de 2017, passando por uma pracinha aqui perto de casa, vi o pessoal do governo arrumando o local que há anos estava abandonado. Isso despertou o desejo de provocar na comunidade uma resposta, de ocupar a pracinha com coisas boas”, conta Carneiro. Pelas redes sociais, ele fez o convite a artistas e amigos para uma intervenção cultural na praça. No primeiro encontro, havia artistas de diferentes expressões e alguns membros da comunidade local. Assim nasceram as Oficinas pelas Cidades Fraternas

Essa foi a primeira intervenção de uma série de outras que buscavam se inspirar em valores como o diálogo, o respeito ao espaço público, a acolhida (inclusive de pessoas em condição de rua) e a fraternidade. “Desde o início, também priorizamos o respeito às normas da administração pública e aos moradores da vizinhança, e isso exigia que houvesse uma busca de diálogo e de um cuidado para que tudo fosse o mais acolhedor e harmonioso”, explica o empreendedor social. 

Em março de 2018, o projeto entrou em crise, em função da mudança de administração municipal, que passou a fazer novas e complexas exigências de segurança, uso de eletricidade, entre outras. O diálogo com a administração e lideranças da cidade foi intensificado, tendo em vista atender essas exigências. “Em certo momento, para nossa surpresa, a administração municipal nos convidou para uma apresentação no dia em que a cidade faria 60 anos. Foi o nascimento de uma nova fase, agora na Praça do Relógio, região central da cidade”, conta Carneiro. 

Praça do relógio em Taguatinga

Mesmo com poucos recursos, a nova intervenção cultural foi organizada com esmero. Desse sucesso surgiu uma parceria com o poder público, que passou a confiar o uso do espaço ao grupo. Este, por sua vez, iniciou uma parceria com a feira de artesanato local. “Desde agosto de 2018, realizamos a manifestação com o nome de Sexta Cultural ou Cesta (se cai em outro dia da semana)”, diz Carneiro. A nova localização do projeto é um espaço de grande movimentação de pessoas, para onde também converge uma série de problemas sociais, o que serve de motivação para realizar a experiência.

Segundo Júlio Carneiro, todos os envolvidos se sentem agradecidos pela iniciativa: administração pública, artistas e feirantes, porque o novo espaço cultural lhes beneficia na medida em que faz da praça um espaço público útil e agradável à comunidade. 

Ação em redes

Para os signatários do Pacto para uma nova governança, o sucesso desse modelo de governo está diretamente relacionado à chamada “filosofia da rede”. “A rede representa o processo mais eficaz para agregar as diversidades e, consequentemente, para responder com um olhar mais rico a complexidade real que nos caracteriza enquanto sociedade”, diz o documento. “O diálogo entre diferentes sujeitos pode recompor o tecido da cidade, porque incrementa o capital social, melhora as escolhas públicas e as torna mais eficazes”, completa o texto.

As experiências de Bogotá e Medellín, na Colômbia, premiadas internacionalmente, parecem confirmar esse argumento. Bogotá já recebeu o prêmio Leão de Ouro, da Bienal de Veneza (2006), voltado à arquitetura e urbanismo, e a Medellín foi concedido o Lee Kuan Yew World City, em 2016, considerado o “Prêmio Nobel das Cidades”. 

Cidade de Medellin

Segundo Federico Restrepo, engenheiro e diretor das Empresas Públicas de Medellín (EPM), a razão para as transformações sociais, econômicas e políticas pelas quais passaram a cidade de Medellín se devem, entre outras medidas, “ao processo de integração de diferentes setores da sociedade – organizações sociais, mundo acadêmico e cultural, entre outras –, que tradicionalmente não se falavam e que passaram a se ouvir reciprocamente e encontrar, juntas, soluções para recompor o até então deteriorado tecido social”.  

Nesse sentido, Restrepo salienta a importância de projetos de intervenção social – conhecidos como Projetos Urbanos Integrais (PUI) – que atendem a exigências culturais de uma região de Medellín habitada especialmente por famílias de migrantes e imigrantes e que, no passado, era marcada pela violência e ilegalidade.

São projetos na área da mobilidade urbana sustentável (como ciclovias e disponibilidade de bicicletas), bibliotecas públicas, ações em áreas de saúde, educação, moradia e outras. Parte dessas iniciativas nasceu a partir do diálogo com a população, viabilizado por medidas que fizeram com que a administração se aproximasse dessa população. Mas o engenheiro colombiano salienta que a condição fundamental desse processo foi o rompimento com o clientelismo (e outras formas tradicionais de política), com a corrupção e, em seguida, o estabelecimento e fortalecimento da consciência cidadã dessas pessoas que viviam à margem da sociedade de Medellín.

Bogotá, a capital, promoveu experiência semelhante, conta a arquiteta Ximena Samper de Neu. Mas ela evidencia que esse processo de transformação existe, nas últimas décadas, graças à continuidade do trabalho de diferentes gestões municipais. As iniciativas, por sua vez, são uma resposta ao processo de profunda mudança ocorrido na capital colombiana desde os anos 1950, cuja população passou de 500 mil habitantes naquele período a mais de oito milhões, na atualidade. Ximena Samper diz que, a exemplo de Medellín, a combinação de vontade política dos gestores públicos, eficiência administrativa e participação cidadã foram os elementos fundamentais para o sucesso desse processo de cogovernança até este momento. 

Recuperação de equipamentos e espaços públicos (mais de quatro mil parques em toda a cidade), construção de bibliotecas e de uma rede de colégios públicos (são mais de 650, atualmente), com serviços de boa qualidade, projetos que favorecem uma mobilidade urbana organizada mediante a utilização de metodologias e técnicas inovadoras estão entre as ações concretas desenvolvidas até aqui e que mudaram a face da capital colombiana, historicamente marcada pelos contrastes sociais. Projetos para o futuro preveem, por exemplo, a recuperação de uma região deteriorada da periferia da cidade, ampliação de aparelhos recreativos e aperfeiçoamento do sistema de mobilidade urbana, completa Ximena Samper.

Essas e outras experiências revelam, na sua base, a aplicação desse conceito de rede cujas conexões entre seus atores atenuam as assimetrias econômicas, políticas e sociais, afirmam os especialistas reunidos em Castel Gandolfo. Para eles, as redes se dividem em três tipos, conectadas entre si: rede de cidadãos (todos aqueles que vivem no território urbano e que, inspirados pela mesma responsabilidade, sustentam a diversidade de funções e tarefas); redes de agentes coletivos (grupos de profissionais e econômicos, sujeitos de voluntariado e do âmbito religioso, da cultura e da universidade, da informação e da comunicação), e rede entre cidades (tendo em vista a unidade mais ampla da família humana).

Essas redes “superam o risco de se transformarem em organizações improdutivas, de egoísmos, porque decidem acolher e envolver como sujeitos todos aqueles que frequentemente estão à margem das dinâmicas democráticas por conta das pobrezas econômicas, relacionais ou culturais”, afirma ainda o Pacto por uma nova governança. 

 

Luís Henrique Marques

 

Matéria publicada originalmente na Revista Cidade Nova em março de 2019

 
Tags:

política, cidadania, politica, cogovernaça