Dia desses eu vi uma porta pela primeira vez

Em tempos difíceis, um suspiro literário da escritora e poeta Clarice Freire.

por Clarice Freire   publicado às 00:00 de 16/04/2020, modificado às 14:25 de 16/04/2020

Dia desses eu vi uma porta pela primeira vez

 

Era só uma porta,  dentre diversas outras tantas portas que abrem caminhos em casas ou ruas pelos cantos dos bairros. Dos mundos. Mas esta estava no meu bairro de sempre, na minha casa de sempre, era a minha porta. A que dava para a minha sala de casa e a rede dos meus descansos, quando eles existiam. Era manhã. Nunca fui das manhãs, apesar de gostar muito delas. Saía apressada para alguma urgência de todos os dias e, num sobressalto, vi a porta pela primeira vez. Atravessou-se diante de mim quase como uma pedra no meio do caminho, mas no meio do caminho tinha uma porta. Fiquei estarrecida diante daquela novidade estranha. 

Parada, não sabia mais seguir em frente. Haveria, eu, desaprendido a andar? Não sabia se desejava ou podia dar o próximo passo. Diante de mim, só a porta vista pela primeira vez. Respirei fundo, olhei para trás, era mesmo a minha sala. Aqueles livros eram mesmo os meus e os sapatos também. Eu estava ali, era eu, mas não como sempre estive. Se estivesse igual, não teria visto, finalmente, a porta. Algo tinha que ter mudado. O que abriu meus olhos para aquele portal de madeira gasta? Tonta, me apoiei em seu trinco gelado pela primeira vez. Tudo era estranho, duro demais ao tato e me faltou a respiração. Fechei os olhos e, com a outra mão, bati na porta. Não sei dizer o motivo pelo qual os nós dos meus dedos bateram como quem chama alguém. Eu estava sozinha em casa. Bati insistentemente e, irritada, a porta se fechou atrás de mim. Ela deve ter cansado. 

Relutante, abri os olhos ainda sem compreender o que estava acontecendo, segurando no trinco estranhamente gélido como quem se agarra ao chão em meio à tempestade. E, acostumando-me ao brilho do sol, vi a minha rua pela primeira vez. E o poste nunca visto antes. E um cachorro triste inédito. E umas folhas novinhas em folha balançando preguiçosas numa despreocupação surpreendente. Tudo me era esplêndido. Olhei para a porta, que me sorriu um sorriso cúmplice como nunca havia sorrido. Depois voltei os olhos para a calçada e, num arroubo de coragem, dei os meus primeiros passos. 

No caminho, lembrei que antes daquela manhã era noite e ela, obviamente, havia amanhecido. 

Naquela noite passada, lembrei que não via nada, não compreendia nada, não era nada além do escuro. Caminhando, acho que compreendi o que aconteceu: no breu, vi melhor quem era eu. 

    

    Na dor, vi sem ver o que era o Amor. 

    E de repente, uma porta é abertura. 

    Uma perda também cura. 

    O céu ganha nova altura. 

    Dobrei a esquina e a vi perder

    facilmente 

    toda velha e antiga

    amargura. 

 

Por Clarice Freire

*Texto publicado originalmente na Revista Cidade Nova em setembro de 2019.