‘Não acredito no conceito de autoajuda’

Inspirado nos “diálogos” com o mar, o psicólogo argentino Claudio García Pintos aponta para o encontro com o outro como chave para a crise de valores que afeta a existência humana

por Luis Marques   publicado às 00:00 de 18/08/2020, modificado às 15:01 de 18/08/2020

Com mais de 30 anos de atua­ção na psicologia clínica e educacional, Claudio Gar­cía Pintos será nosso convidado para uma “live” especial nesta semana, dia 19, às 20h.

Na conversa com nossa reporta­gem, por ocasião do lançamento do livro, em 2017, ele reflete sobre temas que continuam a desafiar o ser humano quanto ao sentido da própria exis­tência – como a crise de valores –, e o faz sob a perspectiva da logo­ terapia, escola da psicoterapia fun­dada por Viktor Frankl. Doutor em Psicologia pela Universidade Católi­ca Argentina e docente titular dessa mesma instituição há três décadas, Cláudio Pintos é também profes­sor convidado de diversas universi­dades latino­americanas e autor de 20 livros, publicados na Argentina, Brasil, Espanha e México.

 

Sobre o que trata exatamente o livro O mar me contou? E por que o mar se tornou fonte de inspiração para essa obra?

O mar me contou é um livro de reflexões sobre o cotidiano. Gira em torno de questões que o homem co­mum se pergunta no dia a dia, sem maiores aspirações filosóficas nem científicas. Essas questões surgem simplesmente do viver, do convi­ ver, do observar o que acontece ao nosso redor. Algumas situações nos envolvem diretamente e outras acontecem com pessoas que passam ao nosso lado. Já a minha relação com o mar é muito forte. Sinto que

existe algo pessoal entre o mar e eu, como se sempre tivéssemos mantido um diálogo. Meu avô materno me inspirou esse amor desde menino e, caminhando com ele pela orla do mar, me contava histórias. Meu avô já não está mais vivo, porém o mar permanece e, agora, é quem me segue falando e contando histórias.

 

Seu livro utiliza imagens de situações cotidianas das pes­ soas, sobretudo na praia, dian­ te do mar, com uma lingua­ gem simples, não acadêmica ou científica. Essas reflexões ficam no campo da autoajuda ou vão além dela?

Não acredito muito no conceito de “autoajuda”. Estou convencido de que ninguém pode se autoaju­dar: todos necessitamos de algo ou alguém que dê o pontapé inicial dessa ajuda e nos contenha. Acre­dito mais no conceito de ajuda mú­tua. Essa mutualidade pode se dar entre duas pessoas, uma pessoa e a natureza, uma pessoa e Deus, entre grupos, entre um grupo e uma pes­ soa etc. Porém, sempre faz falta sair de si mesmo para poder encontrar essa ajuda. De modo que essas refle­xões não aspiram ser ou funcionar como um texto de autoajuda. Se elas podem ajudar alguém a refletir sobre questões pessoais, será porque o leitor entrou em diálogo com o texto, com o mar e sua sabedoria. Nesse caso, são pontos de partida para cada leitor poder mergulhar no mar e escutar o que o mar tem para lhe dizer.

 

As reflexões desse livro se fun­damentam na logoterapia. O Sr. poderia dizer, em linhas ge­rais, quais são os fundamentos dessa linha da psicologia?

Não é simples definir a logote­rapia de Viktor Frankl em poucas palavras. Basicamente, poderíamos dizer que se trata de uma escola de psicoterapia, reconhecida como a Terceira Escola de Psicoterapia de Viena. A primeira é a psicanálise, de Sgimund Freud, e a segunda a psi­cologia do indivíduo, de Alfred Ad­ ler. Numa síntese muito resumida, para Frankl, a primeira motivação da pessoa é responder à pergunta:

“Para que vivo?”, o que chamamos vontade de sentido. A partir dali, com uma liberdade responsável, podemos tomar posição diante das circunstâncias da vida, transfor­mando nossa biografia numa histó­ria de vida com sentido. Trata-­se de o homem permanecer firme e digno diante das circunstâncias, podendo escolher com liberdade quem quer ser. Esse é o desafio maior. Quan­do essas circunstâncias governam a vida do homem – no lugar de serem governadas por ele –, este corre o risco de enfermidades físicas, psí­quicas ou sofrimento espiritual.

 

Em que sentido a logotera­pia compreende e trabalha a espiritualidade?

O primeiro esclarecimento ne­cessário é não confundir espiritua­lidade com religiosidade. São duas coisas distintas. Uma pessoa religio­sa, um niilista, um ateu, um agnós­tico, todos são espirituais. Porque a espiritualidade é parte da natureza, tanto como o processo digestivo. Po­demos descrever a espiritualidade, muito brevemente, em três pontos. Ser espiritual significa: 1­ captar in­tuitivamente o mundo dos valores; 2­ escolher desse universo de valo­res, um ou vários para si; 3­ decidir viver a própria vida, realizando es­ ses valores escolhidos. Por exemplo: captei o mundo de valores e optei pelo valor da fidelidade. A partir dali, decidi viver minha vida como esposo sendo fiel. Isso é expressão da minha espiritualidade. Desse modo, a logoterapia só ajuda as pessoas a discernirem quais valores escolhe­rem para si mesmas, como estão vi­vendo esses valores ou, nesse caso, em que medida seu sofrimento tem relação com o fato de viver contra os valores que escolheram.

 

Quais são as questões exis­tenciais, em sua opinião, que mais perturbam o ser humano de hoje?

Há questionamentos universais e de sempre, vinculados com a so­lidão, a liberdade, a morte e o sen­tido da vida. Porque somos seres autotranscendentes, necessitamos do outro e, se estamos sozinhos, so­fremos. Porque somos seres livres, assumir a responsabilidade de nos­sas decisões pode ser um problema e motivo de sofrimento. Porque so­mos espirituais, a questão sobre o sentido da minha vida, quando não há resposta, gera sofrimento. Essas quatro questões são universais e eternas. Em particular, cada época tem seus próprios sofrimentos. Na realidade, são expressões parciais das quatro preocupações que acabo de assinalar.

Hoje, temos muita consulta por questões sociais (a ins­tabilidade política e econômica de nossos países repercute nos projetos pessoais); violência em diferentes formas (violência doméstica, de gê­nero, bullying etc.); problemas de ca­ráter pessoal (divórcios, dificuldade para sustentar compromissos assu­midos) etc. Porém, reitero que, em todos os casos, são expressões das quatro questões e preocupações essenciais que assinalei inicialmente.

 

Sobre esse quadro, podemos falar de crise de valores? E quais valores em especial es­tão em crise?

O mundo atual vive uma crise de valores, com certeza. Possivelmente, diante do dilema de escolher entre bens e valores, a cultura atual op­tou pelos bens materiais, com certo abandono dos valores. É assim que pessoas, organizações ou comunida­des conseguiram obter muitos bens. Porém, a chave da existência não depende dos bens, mas sim dos va­lores. Há ricos que se suicidam com uma insatisfação existencial esmagadora. Há pobres, por outro lado, que vivem, apesar de suas carências materiais, uma vida de felicidade e sentido. Valores como compromis­so, lealdade, fidelidade, entrega, so­lidariedade e verdade estão hoje em crise e formam parte do substrato da maioria dos problemas pessoais e so­ciais dos quais padecemos.

 

Como o homem pode supe­rar esse cenário de crise de valores? Que ações concretas podem ajudá­-lo a encontrar o equilíbrio para uma vida emo­cional e socialmente saudável?

Um fator fundamental para re­verter essa situação é a educação, sem dúvida. Tanto a educação esco­lar, como a familiar e social. Asfamí­lias tendem a terceirizar a educação,

Esperando que outro seduquem seus filhos. Pais são ausentes nas vidas dos filhos – por diferentes motivos e em toda faixa socioeconômica – e elas (as crianças) têm que tomar decisões precocemente: tomar ou não álcool, iniciar-­se sexualmente ou não etc. As escolas tendem a instruir no lugar de educar. Só se ocupam de transmi­tir dados, porém não desenvolvem valores. A sociedade já não educa as crianças. Há muitos meninos que não são educados nem pela família, nem pela escola, nem pela sociedade. Quem os educa? Ninguém. A edu­cação integra socialmente (é um fator fundamental que democratiza a sociedade); desenvolve o pensa­mento crítico, libertando a pessoa; favorece o crescimento pessoal; pro­põe projeto de vida etc. O grande elemento curador do mundo de hoje é a educação, sem dúvida. Enquanto a educação não for prioridade políti­ca de nossos países, as questões so­cioeconômicas não terão solução.

 

Como conciliar a busca por re­alização pessoal com a necessi­dade de vida em comunidade?

A pessoa é naturalmente auto­transcendente: para se realizar, ne­cessita sair de si e ir ao encontro do não-eu. Em seu interior, tem tudo o que necessita para se plenificar, porém o que plenifica verdadeira­ mente é estar fora de si. Uma pes­soa imanente, que se fecha sobre si mesma e vive de maneira autossufi­ciente, é uma pessoa condenada ao sofrimento. Uma pessoa transcen­dente, aberta ao encontro, ao diálogo, comprometida com algo ou com alguém, está orientada até a plenitu­de. Na atualidade, o individualismo se exacerbou e é uma cultura muito “euísta”. O “eu” se fez o centro. Pos­so conciliar o apetite individual do próprio crescimento pessoal com a necessidade–ao menos natural – de entregar-­se ao estar fora de si.

 

A entrevista com o autor foi originalmente publicada em outubro de 2017.