Com mais de 30 anos de atuação na psicologia clínica e educacional, Claudio García Pintos será nosso convidado para uma “live” especial nesta semana, dia 19, às 20h.
Na conversa com nossa reportagem, por ocasião do lançamento do livro, em 2017, ele reflete sobre temas que continuam a desafiar o ser humano quanto ao sentido da própria existência – como a crise de valores –, e o faz sob a perspectiva da logo terapia, escola da psicoterapia fundada por Viktor Frankl. Doutor em Psicologia pela Universidade Católica Argentina e docente titular dessa mesma instituição há três décadas, Cláudio Pintos é também professor convidado de diversas universidades latinoamericanas e autor de 20 livros, publicados na Argentina, Brasil, Espanha e México.
Sobre o que trata exatamente o livro O mar me contou? E por que o mar se tornou fonte de inspiração para essa obra?
O mar me contou é um livro de reflexões sobre o cotidiano. Gira em torno de questões que o homem comum se pergunta no dia a dia, sem maiores aspirações filosóficas nem científicas. Essas questões surgem simplesmente do viver, do convi ver, do observar o que acontece ao nosso redor. Algumas situações nos envolvem diretamente e outras acontecem com pessoas que passam ao nosso lado. Já a minha relação com o mar é muito forte. Sinto que
existe algo pessoal entre o mar e eu, como se sempre tivéssemos mantido um diálogo. Meu avô materno me inspirou esse amor desde menino e, caminhando com ele pela orla do mar, me contava histórias. Meu avô já não está mais vivo, porém o mar permanece e, agora, é quem me segue falando e contando histórias.
Seu livro utiliza imagens de situações cotidianas das pes soas, sobretudo na praia, dian te do mar, com uma lingua gem simples, não acadêmica ou científica. Essas reflexões ficam no campo da autoajuda ou vão além dela?
Não acredito muito no conceito de “autoajuda”. Estou convencido de que ninguém pode se autoajudar: todos necessitamos de algo ou alguém que dê o pontapé inicial dessa ajuda e nos contenha. Acredito mais no conceito de ajuda mútua. Essa mutualidade pode se dar entre duas pessoas, uma pessoa e a natureza, uma pessoa e Deus, entre grupos, entre um grupo e uma pes soa etc. Porém, sempre faz falta sair de si mesmo para poder encontrar essa ajuda. De modo que essas reflexões não aspiram ser ou funcionar como um texto de autoajuda. Se elas podem ajudar alguém a refletir sobre questões pessoais, será porque o leitor entrou em diálogo com o texto, com o mar e sua sabedoria. Nesse caso, são pontos de partida para cada leitor poder mergulhar no mar e escutar o que o mar tem para lhe dizer.
As reflexões desse livro se fundamentam na logoterapia. O Sr. poderia dizer, em linhas gerais, quais são os fundamentos dessa linha da psicologia?
Não é simples definir a logoterapia de Viktor Frankl em poucas palavras. Basicamente, poderíamos dizer que se trata de uma escola de psicoterapia, reconhecida como a Terceira Escola de Psicoterapia de Viena. A primeira é a psicanálise, de Sgimund Freud, e a segunda a psicologia do indivíduo, de Alfred Ad ler. Numa síntese muito resumida, para Frankl, a primeira motivação da pessoa é responder à pergunta:
“Para que vivo?”, o que chamamos vontade de sentido. A partir dali, com uma liberdade responsável, podemos tomar posição diante das circunstâncias da vida, transformando nossa biografia numa história de vida com sentido. Trata-se de o homem permanecer firme e digno diante das circunstâncias, podendo escolher com liberdade quem quer ser. Esse é o desafio maior. Quando essas circunstâncias governam a vida do homem – no lugar de serem governadas por ele –, este corre o risco de enfermidades físicas, psíquicas ou sofrimento espiritual.
Em que sentido a logoterapia compreende e trabalha a espiritualidade?
O primeiro esclarecimento necessário é não confundir espiritualidade com religiosidade. São duas coisas distintas. Uma pessoa religiosa, um niilista, um ateu, um agnóstico, todos são espirituais. Porque a espiritualidade é parte da natureza, tanto como o processo digestivo. Podemos descrever a espiritualidade, muito brevemente, em três pontos. Ser espiritual significa: 1 captar intuitivamente o mundo dos valores; 2 escolher desse universo de valores, um ou vários para si; 3 decidir viver a própria vida, realizando es ses valores escolhidos. Por exemplo: captei o mundo de valores e optei pelo valor da fidelidade. A partir dali, decidi viver minha vida como esposo sendo fiel. Isso é expressão da minha espiritualidade. Desse modo, a logoterapia só ajuda as pessoas a discernirem quais valores escolherem para si mesmas, como estão vivendo esses valores ou, nesse caso, em que medida seu sofrimento tem relação com o fato de viver contra os valores que escolheram.
Quais são as questões existenciais, em sua opinião, que mais perturbam o ser humano de hoje?
Há questionamentos universais e de sempre, vinculados com a solidão, a liberdade, a morte e o sentido da vida. Porque somos seres autotranscendentes, necessitamos do outro e, se estamos sozinhos, sofremos. Porque somos seres livres, assumir a responsabilidade de nossas decisões pode ser um problema e motivo de sofrimento. Porque somos espirituais, a questão sobre o sentido da minha vida, quando não há resposta, gera sofrimento. Essas quatro questões são universais e eternas. Em particular, cada época tem seus próprios sofrimentos. Na realidade, são expressões parciais das quatro preocupações que acabo de assinalar.
Hoje, temos muita consulta por questões sociais (a instabilidade política e econômica de nossos países repercute nos projetos pessoais); violência em diferentes formas (violência doméstica, de gênero, bullying etc.); problemas de caráter pessoal (divórcios, dificuldade para sustentar compromissos assumidos) etc. Porém, reitero que, em todos os casos, são expressões das quatro questões e preocupações essenciais que assinalei inicialmente.
Sobre esse quadro, podemos falar de crise de valores? E quais valores em especial estão em crise?
O mundo atual vive uma crise de valores, com certeza. Possivelmente, diante do dilema de escolher entre bens e valores, a cultura atual optou pelos bens materiais, com certo abandono dos valores. É assim que pessoas, organizações ou comunidades conseguiram obter muitos bens. Porém, a chave da existência não depende dos bens, mas sim dos valores. Há ricos que se suicidam com uma insatisfação existencial esmagadora. Há pobres, por outro lado, que vivem, apesar de suas carências materiais, uma vida de felicidade e sentido. Valores como compromisso, lealdade, fidelidade, entrega, solidariedade e verdade estão hoje em crise e formam parte do substrato da maioria dos problemas pessoais e sociais dos quais padecemos.
Como o homem pode superar esse cenário de crise de valores? Que ações concretas podem ajudá-lo a encontrar o equilíbrio para uma vida emocional e socialmente saudável?
Um fator fundamental para reverter essa situação é a educação, sem dúvida. Tanto a educação escolar, como a familiar e social. Asfamílias tendem a terceirizar a educação,
Esperando que outro seduquem seus filhos. Pais são ausentes nas vidas dos filhos – por diferentes motivos e em toda faixa socioeconômica – e elas (as crianças) têm que tomar decisões precocemente: tomar ou não álcool, iniciar-se sexualmente ou não etc. As escolas tendem a instruir no lugar de educar. Só se ocupam de transmitir dados, porém não desenvolvem valores. A sociedade já não educa as crianças. Há muitos meninos que não são educados nem pela família, nem pela escola, nem pela sociedade. Quem os educa? Ninguém. A educação integra socialmente (é um fator fundamental que democratiza a sociedade); desenvolve o pensamento crítico, libertando a pessoa; favorece o crescimento pessoal; propõe projeto de vida etc. O grande elemento curador do mundo de hoje é a educação, sem dúvida. Enquanto a educação não for prioridade política de nossos países, as questões socioeconômicas não terão solução.
Como conciliar a busca por realização pessoal com a necessidade de vida em comunidade?
A pessoa é naturalmente autotranscendente: para se realizar, necessita sair de si e ir ao encontro do não-eu. Em seu interior, tem tudo o que necessita para se plenificar, porém o que plenifica verdadeira mente é estar fora de si. Uma pessoa imanente, que se fecha sobre si mesma e vive de maneira autossuficiente, é uma pessoa condenada ao sofrimento. Uma pessoa transcendente, aberta ao encontro, ao diálogo, comprometida com algo ou com alguém, está orientada até a plenitude. Na atualidade, o individualismo se exacerbou e é uma cultura muito “euísta”. O “eu” se fez o centro. Posso conciliar o apetite individual do próprio crescimento pessoal com a necessidade–ao menos natural – de entregar-se ao estar fora de si.
A entrevista com o autor foi originalmente publicada em outubro de 2017.