Eles protagonizaram um relacionamento que, no âmbito eclesial, poderia ser considerado improvável no contexto do final dos anos 1960 e início de 1970. Os personagens desse encontro: o então patriarca ecumênico de Constantinopla (atual Istambul, na Turquia), Atenágoras (leia quadro), e a fundadora do Movimento dos Focolares, a italiana Chiara Lubich. O fato é que essa relação não só se tornou histórica, mas também profética.
Esse é o tema da tese de doutorado, que acaba de ganhar uma versão em livro, de autoria da teóloga e corresponsável pelo Centro Uno (secretaria internacional ecumênica) do Movimento dos Focolares, Sandra Ferreira Ribeiro. O Patriarca Atenágoras e Chiara Lubich: história e profecia de um encontro (em tradução livre) é o título da obra publicada pela editora italiana Città Nuova. O trabalho de pesquisa de Ribeiro foi desenvolvido no âmbito da cátedra ecumênica de Estudos Patriarca Atenágoras e Chiara Lubich, há pouco tempo criada pelo Instituto Universitário Sophia, com sede em Loppiano, Florença (Itália).
Sandra Ribeiro conta que uma frase do livro O Espírito Santo, nossa esperança, do cardeal belga Leo-Jozef Suenens, prelado que acompanhou o encontro entre essas duas personalidades, a motivou à pesquisa.
“Sem dúvida, chegará o dia no qual se escreverá a história comovente do relacionamento entre o patriarca Atenágoras e Chiara Lubich, que foi como uma antecipação da unidade visível entre as igrejas da qual estamos ainda à procura”, afirmou o cardeal Suenens.
Esse relacionamento nasceu do interesse de Atenágoras em conhecer Chiara, com quem logo se identificou, já que ambos tinham um forte desejo de construção da unidade no mundo, a começar entre as igrejas cristãs e, em especial, entre a Igreja Ortodoxa e a Igreja Católica. Assim que soube que ele queria conhecê-la, Chiara foi ao encontro do patriarca de Constantinopla.
Eles se encontraram pela primeira vez em 13 de junho de 1967. Depois disso, foram mais 24 encontros, realizados em um período de cinco anos, sendo o último em 29 de abril de 1972, poucos meses antes do falecimento do patriarca (7 de julho de 1972). Desde o primeiro contato, Chiara manteve o papa Paulo VI atualizado sobre esse relacionamento. Mais que isso, ela atuou como portadora de mensagens e de uma verdadeira comunhão entre esses dois grandes líderes religiosos daquele período. Não se pode afirmar quais foram as consequências dessa mediação de Chiara, mas o fato é que, nesse período, depois de um mês do primeiro contato, para surpresa de muitos, o papa Paulo VI foi a Istambul encontrar-se com o patriarca Atenágoras, o que foi, naquele momento histórico, um passo importante nas relações entre a Igreja Católica e as igrejas ortodoxas.
Chiara Lubich e patriarca Atenágoras
Mas, afinal, o que há de profético nesse relacionamento? Para Sandra Ribeiro, o amor recíproco, no mais genuíno sentido evangélico, define a relação entre o patriarca Atenágoras e Chiara Lubich e justifica o termo profecia para que essa experiência permaneça, ainda hoje, como uma inspiração para o movimento ecumênico.
Na abertura desta matéria, fizemos referência à possibilidade de ser uma relação improvável, especialmente para aquele momento histórico. Embora o Concílio Vaticano II tivesse levado a Igreja a abrir-se ao ecumenismo, essa era uma experiência bastante incipiente para os católicos e ortodoxos. Também o próprio patriarca de Constantinopla tinha sido o promotor das chamadas grandes conferências de Rodes, cujo objetivo era justamente promover a reflexão dos ortodoxos sobre a importância de abrir-se para o mundo ecumênico.
O fato é que se tratava de uma relação entre duas pessoas muito diferentes: Chiara era muito mais jovem que o líder ortodoxo; ele era de uma cultura médio-oriental, ela, de cultura ocidental; ele, ortodoxo, ela, católica. Isso sem falar do fato de Chiara ser uma mulher, o que, em um contexto eclesial dominado por homens, era, no mínimo, inusitado. Nesse sentido, Ribeiro salienta que um dos aspectos que esse relacionamento coloca em evidência é a relação harmoniosa entre a Igreja institucional, representada por Atenágoras e por Paulo VI, e a Igreja carismática, representada por Chiara.
Embora separados por pertencerem a confissões cristãs diferentes, ambos não só partilhavam do grande desejo de unidade entre as igrejas, como também viviam de forma concreta e intensa por essa causa. Nesse sentido, essa experiência permanece como uma inspiração para o diálogo ecumênico hoje, argumenta a teóloga brasileira. Ribeiro lembra uma expressão cunhada pelo teólogo italiano Piero Coda que, segundo a visão dela, sintetiza muito bem essa relação: “Uma alma, duas igrejas”.
“Hoje, nota-se que o movimento ecumênico tem uma grande necessidade de espiritualidade”, avalia a pesquisadora. Ela explica que, a esse respeito, fala-se muito em um “ecumenismo receptivo” por meio do qual as igrejas deveriam estar mais ocupadas em aprender umas com as outras do que em ensinar. “Isso só é possível se existe na base das relações ecumênicas uma profunda fé cristã e uma busca pela unidade”, conclui Ribeiro, para quem a experiência de Atenágoras e Chiara é uma referência porque corresponde ao projeto de Deus para a sua Igreja e para humanidade. Isso está expresso claramente na oração sacerdotal de Jesus, presente no Evangelho de João: “Pai, que todos sejam um para que o mundo creia” (Jo 17,21).
Para chegar a essa conclusão, Sandra Ribeiro examinou a correspondência trocada entre ambos, alguns pronunciamentos de Chiara sobre esses encontros, artigos publicados na revista Città Nuova e cartas que a fundadora dos Focolares trocou com o papa Paulo VI. Em seu trabalho, que está dividido em três grandes partes, ela apresenta o contexto histórico desse encontro, evidenciando a ação do Espírito Santo na vida da Igreja; descreve os encontros segundo uma leitura teológica e espiritual e, finalmente, busca responder à questão que motivou a sua pesquisa.
“O que Atenágoras e Chiara vivenciaram foi, na verdade, tornar vivo aquilo que todo fiel seguidor de Cristo deve realizar, isto é, uma relação de comunhão à luz do princípio do amor trinitário”, afirma Ribeiro.
As igrejas ortodoxas são chamadas autocéfalas, isto é, possuem uma liderança máxima (o chamado patriarca) e não contam com um líder universal, como é o papa para a Igreja Católica. Por tradição, o patriarca ecumênico de Constantinopla assume o papel de representante de toda ortodoxia. Por isso, a Igreja Ortodoxa é, na realidade, “uma igreja feita de muitas igrejas”, explica Sandra Ribeiro. Elas estão profundamente unidas por uma única fé, que é a mesma dos Apóstolos – razão pela qual estão muito próximas da Igreja Católica –, mas contam com uma autonomia administrativa. No entanto, no que diz respeito a questões doutrinais, qualquer mudança só pode ser realizada por meio de um sínodo com a participação de todas as igrejas dessa comunidade.
As igrejas ortodoxas e a Igreja Católica se separaram em 1054, um dos grandes cismas no cristianismo. É uma história marcada por disputas de poder, desencontros e até mesmo violência. Segundo Ribeiro, o patriarca Atenágoras era alguém disposto a deixar tudo isso para trás e buscar a unidade. Ele tinha uma experiência e visão cosmopolitas, de abertura ao diálogo ecumênico, inter-religioso e com as culturas em geral. Muito inteligente, com uma sólida formação intelectual, o patriarca de Constantinopla era uma pessoa autêntica, afirma a teóloga brasileira. “Ele acreditava no ser humano; para Atenágoras, toda pessoa era potencialmente boa.”