Para entender a Economia de Francisco [com entrevista exclusiva]

por Gustavo Monteiro   publicado às 00:00 de 08/09/2022, modificado às 15:51 de 08/09/2022

A CIDADE de Assis, na Itália, se prepara para receber jovens economistas, estudantes, empreendedores e agentes de mudança do mundo inteiro entre os dias 22 e 24 de setembro. A proposta é clara e audaciosa: juntos, repensar a economia global, dar continuidade a um processo que seja capaz de realizar mudanças concretas na maneira como produzimos, consumimos e estamos no mundo. Este é o terceiro evento da “Economia de Francisco”, proposta lançada pelo papa há 3 anos e que contará, pela primeira vez, com a presença física de cerca de mil jovens de 100 países diferentes, de acordo com os organizadores.

“A Economia de Francisco é uma realidade jovem, feita por pessoas que sentem que a economia, assim como está, não basta, não satisfaz. E, em nome de São Francisco, (ou seja, em nome da paz, da fraternidade, da natureza) junto ao papa Francisco, que é portador da mesma mensagem de fraternidade, sentem o desejo de se envolver na produção de uma economia diferente, e fazem isso em rede com todo o mundo. A força desse projeto é que ele é jovem, tem a bênção de dois Franciscos e que é global”, explica o economista italiano Luigino Bruni, primeiro idealizador do processo.

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O início de um sonho

É um mundo pré-Covid 19, mas o economista Luigino Bruni, membro do Movimento dos Focolares e um dos expoentes mundiais da Economia de Comunhão, já sente que muitas estruturas estão doentes. Ele lembra da proposta que recebeu da fundadora dos Focolares, Chiara Lubich, em 1998: “deve nascer uma corrente de pensamento que atraia os melhores economistas e empreendedores de hoje, incluindo os que ganham o prêmio Nobel”. 

“É evidente que não dá para mudar o capitalismo só com os membros do Movimento dos Focolares. Mas, naqueles anos, parecia que o Movimento era o fermento e a massa ao mesmo tempo. Depois de 20 anos daquela mensagem de Chiara, estava cada vez mais forte dentro de mim a ideia de que se nós quiséssemos colocar em prática a Economia de Comunhão, deveríamos fazer isso junto aos outros; deveríamos nos tornar ativadores de processos que envolvessem a igreja e todos”, reflete Bruni. Pensando em quem, no mundo, poderia propor algo desse nível, o focolarino conseguiu chegar a apenas uma pessoa: o papa Francisco. 

Para ele, o papa é o único que, mesmo católico, tem autoridade moral universalmente maior do que a que pode ter um vencedor do prêmio Nobel ou qualquer outra personalidade pública. Em março de 2018, Bruni enviou uma carta ao papa pedindo uma conversa de 10 minutos, e, para sua surpresa, o pontífice lhe propôs uma audiência privada no Vaticano. A ideia era envolver o papa na preparação de um evento para renovar a economia de maneira geral, mas, entre o envio da carta e a audiência presencial que aconteceria três meses depois, a vontade de propor algo para jovens estudantes de economia ganhava sempre mais peso.

 “Ele me recebeu e, conversando, eu lhe contei sobre esse desejo. O papa, então, respondeu: ‘se é para os jovens, eu me interesso. Para os adultos eu não quero. Eles normalmente só querem saber da foto oficial, mas os jovens, esses sim, são capazes de mudar realmente as coisas’. O papa Francisco ficou muito feliz com a ideia e dali nasceu um relacionamento de confiança entre ele e eu”, relembra o economista. “Eu vi que ali, diante de mim, estava uma pessoa boa, que amava os jovens e que queria fazer realmente alguma coisa para mudar a economia. Eu percebi, antes de mais nada, o seu coração largo, mas também a sua inteligência e a capacidade de raciocínio lógico.”

Bruni entendeu, depois dessa conversa, que não teria lugar melhor para sediar um evento desse nível do que a cidade de Assis, de onde surgiu o primeiro Francisco. “Fui rapidamente falar com o bispo e a prefeita de Assis, porque se tratava de algo religioso e civil ao mesmo tempo.” E ntão , no dia primeiro de maio de 2019, e depois de um longo processo de organização e encontros, o Papa Francisco lançou uma carta aberta convidando os jovens do mundo inteiro que estivessem interessados em “dar uma nova alma à economia” a virem a Assis em março do ano seguinte.

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Deu tudo certo, ou “quase” 

Era fevereiro de 2020, faltavam poucas semanas para o evento, jovens de diversos países estavam com a passagem aérea comprada, quando os noticiários do mundo inteiro relataram que o primeiro país ocidental a ser atingido pelo até então desconhecido coronavírus era a Itália, lugar sede do evento. No início de março, a Organização Mundial da Saúde (OMS) decretou estado de pandemia, o que levou ao cancelamento do encontro “A Economia de Francisco” e, ao mesmo tempo, abriu as portas para um percurso de formação e encontros on-line entre os jovens inscritos. 

Em novembro daquele mesmo ano, aconteceu o primeiro encontro on-line, de três dias, transmitido diretamente de Assis. “Dezenas de milhares de jovens se conectaram via zoom nessa primeira edição. Visto que o Covid não passava, em outubro de 2021, fizemos mais um encontro virtual. Nesse meio tempo, nasceu uma escola internacional de formação on-line, com 18 estudantes e profissionais da economia, e, nos vários países, uma série de comunidades e grupos de trabalho. E agora, finalmente, nos encontraremos pessoalmente, depois de quatro anos daquele meu primeiro encontro com o papa”, comemora o economista.

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De uma Assis deserta ao mundo inteiro 

Catalina Hinojosa, jovem do Equador formada em Ciências Políticas e Relações Internacionais, estava estudando, na Itália, alternativas ao desenvolvimento quando ficou sabendo do convite do Papa Francisco, em 2019. Como “agente de mudança”, ela se inscreveu para participar da aldeia temática dedicada à agricultura, seu tema de estudo desde a graduação, mas os primeiros meses de encontros não foram muito satisfatórios. 

Com criticidade e desânimo, ela falou pessoalmente com Luigino Bruni, que a aconselhou: “No mundo, sobretudo quando você começa a crescer no ambiente dos adultos, você vai ver, muitas vezes, coisas que não estão bem, mas nem por isso você deverá perder a coragem. Se uma realidade concreta não dá os frutos que um projeto maior está destinado a dar, não quer dizer que este projeto tenha que morrer. Talvez seja o momento de fazer ainda mais por essa realidade que está com problemas, porque acreditamos que os frutos chegarão, talvez a gente nem veja, talvez venham só no futuro, mas eles chegarão”. E foi ali que ela aceitou ser a apresentadora do primeiro evento virtual da Economia de Francisco, serviço que ela prestou também na segunda edição, em 2021.

“Pude me sentir como portadora da voz de todos os jovens. Nós não nos apresentávamos só por apresentar ou para ter algum tipo de reconhecimento, mas para ser ‘Economia de Francisco’, principalmente naquele momento da pandemia em que não podíamos sair para nada. Transmitir esse projeto para um mundo nessa situação era entusiasmante e difícil, ao mesmo tempo, porque era preciso ter dentro toda a humanidade, todos os jovens que, nos seus países, viviam pela Economia de Francisco”, lembra Catalina, que tem hoje 32 anos. 

Os apresentadores se reuniram em uma Assis deserta, apenas com a equipe de filmagem e as poucas pessoas que fariam participações especiais durante esse primeiro evento on-line. Catalina lembra, com emoção, o clima de família que existia entre todos no final: “Um dos rapazes que filmava disse que nunca tinha visto isso nos outros eventos de que ele tinha participado. Era, de fato, um clima de comprometimento, mas algo muito leve, de fraternidade mesmo. Até hoje os que participaram daqueles dias de trabalho trocam mensagens, viramos amigos”.

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É de Francisco e de Clara  

No Brasil, os participantes decidiram criar uma rede para conectar todos os participantes envolvidos com a Economia de Francisco no país. “Criamos a Articulação Brasileira para a Economia de Francisco. Na presença das mulheres aqui do Brasil, e sobretudo das mulheres jovens que estavam no primeiro evento brasileiro, houve a proposta de adicionar ‘Clara’ ao nome, para colocar em luz a representatividade feminina”, conta o jovem sociólogo Eduardo Brasileiro, de Itaquera, zona leste da capital paulista. Ele, que tem hoje 31 anos, está inscrito na aldeia temática intitulada “Negócios e paz”. “Nessa vila, a gente está discutindo como é preciso criar, dentro das empresas e dos movimentos, processos de transição para a paz.”  

Como explicou Eduardo, que está se preparando para embarcar para Assis em setembro, no Brasil, o processo que surgiu a partir do convite oficial do papa Francisco em 2019 é conhecido como “Economia de Francisco e Clara” por decisão da articulação brasileira de participantes. Maria Helena Faller, participante brasileira e presidente da Associação Nacional por uma Economia de Comunhão (ANPECOM), assim explica o processo: “É um movimento plural, democrático, que visa acolher todas as vozes, todas as perspectivas políticas e científicas, partindo dos princípios de reconstrução econômica contidos nas encíclicas do papa, em especial a Laudato Si’”. 

Em mensagem para os participantes brasileiros, Luigino Bruni encorajou o grupo: “Não caiam no erro de se tornarem adultos muito rápido e de perderem a capacidade de acreditar nos ideais, de olhar a realidade e desejar algo diverso. Ai dos que roubam isso dos jovens e acham que é tudo sonho! Mas também não caiam no erro de se perderem no completo oposto, no total idealismo e, em nome de uma crítica ao capitalismo que pode se tornar ideológica, perder a beleza da economia assim como ela já é, hoje. A beleza do trabalho de todos os dias, de um escritório, de uma fábrica, a dimensão do trabalho como ato criativo... O sonho é bom se alguém depois acorda e faz com que ele se torne realidade”. 

Catalina completa: “Economy of Francesco nasceu na Itália, mas os participantes mais numerosos são os brasileiros. Continuem a levar adiante a voz de vocês, vocês trazem importantes reflexões sobre a questão indígena, sobre os negócios em todos os níveis da sociedade: dos pobres às empresas, aos políticos, aos processos de mudança, aos direitos humanos! Entrem em tudo e vejam quais são as vossas feridas e ali encontrarão a resposta. Nisso, acredito, vocês levam a voz de tantos latino-americanos”. 

Economia em aldeias

Os participantes inscritos se dividem em 12 aldeias temáticas, que representam sessões de trabalho sobre os grandes temas da economia “de hoje e de amanhã”. 

• Finanças e Humanidade 

• Negócios em transição 

• CO2 da desigualdade 

• Agricultura e justiça 

• Energia e pobreza 

• Mulheres para a economia 

• Negócios e paz 

• Vida e estilo de vida 

• Trabalho e cuidado

• Políticas para a felicidade 

• Gestão e dom 

• Vocação e lucro

Saiba mais no site oficial: francescoeconomy.org

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Por Gustavo Monteiro

*Matéria publicada originalmente na Revista Cidade Nova de Agosto de 2022