Educação
  

Profissão, não sacerdócio

PROFESSOR O ofício de ensinar é, antes de tudo, uma ocupação que precisa ser reconhecida e que exige não só preparo técnico, mas também emocional e afetivo

por Airam Lima Jr   publicado às 00:00 de 13/10/2022, modificado às 16:03 de 13/10/2022

EM 15 DE OUTUBRO, comemora-se o Dia do Professor, aquela pessoa presente na vida de todos, sem exceção, e cuja atuação molda nossas vidas. Nossos mestres são quase os segundos pais. Principalmente quando somos mais jovens, criamos com eles um vínculo afetivo que, em muitos casos, persiste com o passar dos anos.

Porém, o professor aposentado Erasto Fortes Mendonça, com a experiência de ter formado muitos outros professores na Faculdade de Educação da Universidade de Brasília, lembra que, ainda que a construção desse vínculo seja parte indispensável da atuação do mestre, ele é, antes de tudo, um profissional que precisa ser respeitado e valorizado. E aí, com outra experiência, a de ter sido membro do Conselho Nacional de Educação, Mendonça resgata a evolução histórica da educação no Brasil, mostra como a profissão foi desvalorizada nas últimas décadas e critica as recentes políticas para o setor.

O que é ser professor hoje no Brasil? 

Para responder a essa pergunta, é preciso resgatar um pouco da história da educação no Brasil. No processo da colonização, a educação e o ensino foram tratados como um monopólio dos jesuítas durante 210 anos, de 1549 a 1759. A Coroa portuguesa não teve a preocupação de oferecer o ensino no Brasil. Isso fez com que a gente permanecesse até hoje com a visão de que a tarefa do professor é uma missão, como a do sacerdote, o que dificulta a compreensão de que ensinar é uma tarefa – na verdade, é uma militância de professar aquilo em que se acredita. O professor é um profissional e precisa ser entendido como tal. O Paulo Freire tem um livro muito interessante, Professora sim, tia não, em que diz que é preciso resgatar o sentido do magistério como uma profissão que precisa ser assumida por aqueles que a exercem e respeitada pela sociedade. 

Mas, mesmo com uma visão distorcida do profissional, o professor já não foi mais valorizado no Brasil?

Aqui, a educação passou a ser vista como direito de todos muito tarde. Na Europa, depois da Revolução Francesa (1789), foram construídos sistemas públicos que fizeram uma grande inclusão educacional. No Brasil, isso vai ser uma preocupação só a partir de 1932, quando 26 intelectuais brasileiros assinaram o Manifesto dos pioneiros da educação, em que exigiam do Estado a garantia de educação pública para todos. Mas a explosão de matrículas para o ensino obrigatório só começa na década de 1960. Então, essa é uma coisa muito nova para a gente. Para entender como foi essa mudança, eu dou sempre este exemplo: se você pegar os prédios de escolas públicas das décadas de 1940 ou 1950, vai ver verdadeiros palácios. No que se transformaram as escolas públicas ao longo do tempo? Em lugares insalubres, degradantes. A mesma coisa aconteceu com a função do magistério: ela se proletarizou, foi se sucateando ao longo do tempo. A verdade é que, quando a população mais pobre foi incluída, a escola se degradou, porque o Estado não teve, ou não quis ter, a capacidade de garantir a mesma qualidade que ele oferecia para os grupos de elite da sociedade. Hoje, a gente convive com essas dificuldades. Tem uma lei que garante um salário mínimo profissional para o professor, e os prefeitos entram na Justiça para não ser obrigados a pagá-lo. Veja a que ponto chegamos!

Se o professor é um profissional, isso significa que ele precisa mesmo é ser bem formado tecnicamente?

O professor precisa, acima de tudo, ter preparo científico, mas também emocional e afetivo. Essa tarefa exige, de alguma forma, querer bem as pessoas a quem a gente se dedica no processo de ensinar. É preciso a gente ter coragem para amar as pessoas sem ser piegas. Eu fui estudante e, depois, lecionei numa escola salesiana. E Dom Bosco [fundador dos salesianos] afirmava que os alunos precisam ser amados, mas só isso não: eles precisam se reconhecer amados. Então, para exercer seu ofício, o professor precisa ter o preparo científico, técnico, mas o emocional permite que ele construa um vínculo pedagógico, que é sobretudo afetivo. Eu lembro a experiência de Chiara Lubich [fundadora do Movimento dos Focolares] quando era professora. Tem um livro com depoimentos de ex-alunos dela em que se diz que “a professora Silvia [nome de batismo de Chiara] não tinha caneta vermelha”. Isso mostra a capacidade que Chiara tinha de se tornar uma referência de afeto para aquelas crianças muito pequenas. Ela não riscava os exercícios dos alunos dela com tinta vermelha, porque não sublinhava o erro. Ela fazia, daquele eventual erro, um aprendizado. Esse é o papel do professor. 

Se você está gostando do texto, então irá gostar de ler o livro O Sonho de Francisco, sobre a educação de uma ecologia integral. 

Mas as condições de trabalho do professor, hoje, não merecem uma caneta vermelha?

É verdade que a gente vive um período de muita destruição de políticas públicas na área de educação. Nos últimos anos, muitas conquistas que tivemos – de acesso, por exemplo, à educação superior – foram se perdendo ao longo do tempo. Uma coisa que tem me perturbado muito nos últimos tempos é essa política de militarização das escolas públicas, de colocar dentro delas uma gestão exercida por policiais militares. Isso é um desrespeito total ao magistério! A gente não pode tolerar isso em hipótese alguma. O oficial militar não foi preparado para estar dentro das escolas, especialmente fardado e armado, intimidando professores e estudantes, transferindo para lá a lógica do quartel.

Mas há muitos pais de alunos que apoiam essa política, porque não querem ver a atenção dos jovens desviada para outras coisas, inclusive mais graves, como o crime.

Na verdade, é construída para as famílias uma ilusão de que os filhos vão frequentar um colégio militar, que é uma escola de preparação para essa carreira. Esses colégios têm uma infraestrutura maravilhosa, e os outros não têm isso. Uma pesquisa da Universidade Federal do Ceará mostrou que colégios puramente civis têm resultados melhores que os militares.

A grande novidade do trabalho dos professores nos últimos dois anos foi a aula a distância, online. Da noite para o dia, todos tiveram de aprender a ensinar pelo computador. Como eles passaram por essa mudança tecnológica?

Primeiro, a gente não pode chamar isso de educação a distância porque existem alguns critérios para essa modalidade ser considerada assim, e as aulas virtuais, durante a pandemial, não cumpriram esses requisitos de forma alguma. Na verdade, o que a gente teve foi um professor na frente de um celular ou de um computador dando aula como se estivesse na sala de aula. Os estudantes tinham dificuldades para acompanhar, até de ter acesso à internet nas suas casas. Então, o governo, especialmente o federal, perdeu a grande chance de promover uma formação aos professores, para que eles pudessem fazer isso de maneira mais adequada, e de fornecer as condições de infraestrutura e tecnologia. Com isso, a gente teve uma precariedade muito grande e uma defasagem no aprendizado.

Quer dizer que a maioria dos professores, que teve de dar aula de maneira inadequada, sem preparação, durante a pandemia, está voltando agora à sala de aula com o alívio de quem, por exemplo, superou uma doença, porque vai continuar sem saber usar a tecnologia?

Em parte sim, mas é preciso registrar que os professores, de uma maneira geral, se envolveram num processo muito intenso de tentativa de obter a própria formação com ensaio e erro. Porque a gente não pode dizer, como alguns chegam a afirmar, que os professores não trabalharam durante a pandemia. Isso é um absurdo! Os professores nunca trabalharam tanto na vida. E nunca tiveram, por exemplo, a experiência de expor sua intimidade dentro das casas. Eu acho que essa metáfora que você utilizou pode ajudar a explicar essa questão, mas eu não gostaria que isso fosse compreendido como se eles não tivessem feito nada para tentar superar as dificuldades.

E agora o professor pode ignorar a possibilidade de dar aulas online?

Acho que a presença da tecnologia no ensino se tornou irreversível, para o bem ou para o mal. Por exemplo, pode haver especialmente escolas privadas que se utilizem da tecnologia para precisar menos do professor, inclusive usando coisas gravadas. De outro lado, nós temos, na pós-graduação, bancas para exames de qualificação de projetos de pesquisa, que exigiam das universidades uma logística e um gasto de recursos extraordinários, com professores viajando de um lado para outro, hospedando-se durante um período... Com a tecnologia, hoje praticamente não existe mais banca presencial. Como os pesquisadores e os professores que estão na banca são pessoas maduras, é possível uma interação real, que pouco difere da presença física.

Por outro lado, com a tecnologia, o professor tem de disputar hoje a atenção do aluno com uma série de outras coisas, como o celular. Como o professor deve agir para atrair a atenção dos seus alunos e construir o vínculo pedagógico?

Vou insistir na minha questão. Quando a gente tem com o estudante um vínculo pedagógico verdadeiro, honesto, inclusive de amorosidade, eu acho que essa recíproca é verdadeira – eu dou o amor e recebo dele também o amor. Agora, para que isso aconteça, é preciso que a gente tenha lealdade, honestidade, sinceridade... Quanto à distração do estudante com outros elementos, a gente tem experiências maravilhosas em que o professor, em vez de proibir, usa o celular dentro da sala de aula para que o aluno possa acompanhar o que está sendo desenvolvido em termos de conteúdo. Então, é uma bobagem esse negócio de dizer que a gente precisa proibir o celular. É claro que, hoje em dia, a variedade de coisas que chamam a atenção é muito maior do que há dez anos. Mas ou a gente se adapta ao mundo novo que está aí ou a escola está fadada ao fracasso.

O que o senhor diria a um jovem que quer ser professor?

O primeiro conselho é: invista no seu desejo, ele é maravilhoso. Com ele, além de ter uma formação, você vai ter uma profissão que é, acima de tudo, a possibilidade de construir relacionamentos afetivos com crianças e com a juventude, ou com adultos, de maneira que isso servirá não só para os estudantes, mas também e sobretudo para você. Eu não desaconselho ninguém a ser professor em função das dificuldades que a profissão tem hoje em dia.
 

Por Airam Lima Jr.

 

Fonte: Revista Cidade Nova, edição outubro de 2022. 

 
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