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Uma rede de desinformação

COMUNICAÇÃO. A divulgação de conteúdos desinformativos tornou-se um fenômeno que precisa ser compreendido enquanto processo, para ser combatido de forma adequada. Foto: Bruno Maestrini.

por Luís Henrique Marques   publicado às 00:00 de 13/05/2025, modificado às 11:26 de 13/05/2025

ENTRE os muitos contrassensos da vida contemporânea está a desinformação: justamente quando temos acesso, de diferentes formas, a muita informação, somos bombardeados por meias verdades e mentiras, o que afeta de modo dramático a vida em sociedade, sobretudo as nossas decisões e relações na vida em sociedade. Esse é o tema do último livro da professora Raquel Recuero, A rede da desinformação: sistemas, estruturas e dinâmicas nas plataformas de mídias sociais, publicado pela editora Sulina. Dada a indiscutível importância desse fenômeno, Cidade Nova convidou a professora Recuero para uma conversa sobre a desinformação.

Ela é professora e pesquisadora do Centro de Letras e Comunicação da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).  Coordena o laboratório interdisciplinar de pesquisa MISARS (Mídia, Discurso e Análise de Redes), fundado em 2013, que hoje congrega mais de 15 pesquisadores e estudantes interessados em trabalhar com plataformas de mídia social, desinformação e discurso. Recuero é, ainda, autora e coautora de diversos livros sobre os temas relacionados à mídia social, assim como de dezenas de artigos publicados em periódicos nacionais e internacionais sobre o impacto das plataformas de mídia social no cotidiano social brasileiro.

Leia, a seguir, os principais trechos dessa entrevista.

O tema da nossa entrevista é desinformação. Você poderia apresentar as principais características desse fenômeno hoje? E por que isso se tornou um fenômeno de ampla projeção na vida das pessoas?

A desinformação é um fenômeno que tem muito impacto na vida das pessoas, principalmente por causa das plataformas de rede social. A mentira não é uma coisa nova. Porém, produzida em ritmo industrial, muitas vezes por inteligência artificial e por sistemas artificiais, outras vezes impulsionada pelos algoritmos das plataformas, por pessoas que são pagas para curtir ou compartilhar certos assuntos e por interesses evidentemente econômicos e políticos, ela acaba tendo um impacto muito maior na sociedade. Eu chamo bastante a atenção, por exemplo, para a desinformação em saúde: há pessoas que têm um desejo imenso de serem famosas, se intitulam profissionais de saúde e apresentam informações absolutamente incorretas nessa área, sem nenhuma base científica. O público tende a acreditar porque é bombardeado por esse conteúdo mostrado pelo algoritmo e que aparece cheio de curtidas e compartilhamentos. As pessoas tendem a dar crédito a isso e acabam tomando decisões erradas, decisões que trazem prejuízos para elas, para os familiares e que afetam, por exemplo, o sistema público de saúde. Esse fenômeno, associado às plataformas, tem um impacto muito grande porque permite a manipulação da opinião pública.

Em seu livro A rede da desinformação, você parte de um princípio segundo o qual o problema da desinformação é sistêmico. Em linhas gerais, o que isso significa?

É sistêmico porque o problema não é a desinformação em si mas como ela é produzida, espalhada e legitimada. Hoje, temos cada vez menos espaços públicos de debate na sociedade. Somos muitos individualistas e, por isso, esses espaços de debate estão desaparecendo, o que deixa as comunidades se fragmentem. Isso leva as pessoas individualmente a estar muito  suscetíveis a receber um bombardeio de conteúdo e levar isso a sério. Então, a desinformação funciona muito mais. Ela tem muita força na sua legitimação. Por isso, vemos certos conteúdos sendo amplamente espalhados, em milhões de canais, com altas produções, para que cheguem às pessoas. 

As plataformas permitem que esse tipo de difusão de informação se torne um bombardeio. O que isso quer dizer? Nós somos seres sociais, estamos inseridos em uma sociedade e temos essa conexão com que os outros fazem, mesmo que pensemos não ter. Vemos as ações dos outros ao nosso redor e modulamos as nossas ações de acordo com os outros. O que acontece com a desinformação em massa nesse sistema das plataformas? Ela atinge esse aspecto social. Então, mesmo que não acreditemos no início, uma mensagem desse tipo vai sendo repetida tantas vezes, tantas pessoas vão legitimando, que começamos a balançar. Isso constrói descrédito, mina as informações de que as pessoas precisam para exercerem a sua cidadania. Elas vão ficando cada vez mais distantes de um conteúdo de qualidade no qual podem confiar para tomar decisões. Isso é um grande problema.

As pessoas não são apenas vítimas, mas também, mesmo se bem intencionadas e com bom nível de escolarização, colaboram para o processo de desinformação. Por que isso ocorre?

Todas as pessoas querem estar certas, querem ser legitimadas por seus pares. Queremos que os outros reconheçam a nossa importância, o nosso valor na sociedade, e a desinformação se presta precisamente para isso. Posso assumir uma posição porque toda a internet concorda comigo. Isso é um elemento muito sedutor, e as pessoas se sentem muito legitimadas de proclamar desinformação na internet porque outros concordam. Essa desinformação dirige-se a um fenômeno que chamamos de “bolha”. Aqui, nos referimos aos algoritmos. Como eles funcionam? Eles tendem a mostrar o conteúdo com o qual nós vamos concordar. Isso privilegia certos tipos de conteúdo que não são necessariamente informações que precisamos saber para exercemos a nossa cidadania, para o trabalho do nosso dia a dia. Esses conteúdos são, muitas vezes, sensacionalistas, têm certas gramáticas que vão fazer com que eles circulem mais. Quase sempre, são desinformativos. Eles têm informação pela metade, têm enquadramentos errados e, às vezes, são pura mentira. Acabamos olhando e compartilhando essas coisas porque acreditamos que estão corretas, mesmo às vezes sabendo que não estão. É muito comum na política que isso se torne uma coisa de torcida: parece que as pessoas perdem a racionalidade. Elas são tomadas pela emoção. A desinformação fala para a emoção, justamente para nos irritarmos, sermos agressivos, para soltarmos as nossas frustrações. É disso que a desinformação se alimenta. Ela também se alimenta do ódio e esse é um ponto muito importante.

É senso comum que o brasileiro, em geral, não é muito adepto da leitura e do estudo, o que se torna um cenário ainda mais complicado com a contínua crise em que a educação em nosso país se encontra. O quanto isso, de fato, influencia na possibilidade de ele estar sujeito à desinformação?

Sim, a desinformação tem um impacto maior em pessoas com baixa escolaridade. No entanto, temos visto que a desinformação tem circulado muito em grupos com mais escolaridade. Esse é um fenômeno que muitos pesquisadores têm tentado entender: por que pessoas que teriam condições de identificar e desmentir uma desinformação são seduzidas por ela? Parte disso tem a ver com as nossas certezas da vida: não queremos ser questionados sobre privilégios, espaço social, sobre coisas que queremos acreditar porque, muitas vezes, elas são mais simples, nos deixam mais confortáveis. Nós tendemos a procurar essas respostas que não nos incomodam. 

A forma como as pessoas reagem à desinformação é outro ponto importante. Observe que, na sociedade, existem certos consensos – que exigem cooperação entre as pessoas – e permitem que elas sigam em frente. O que a desinformação faz é semear o dissenso, destruir os consensos sociais, porque isso faz com que as pessoas não se sintam impelidas a tomar certas atitudes que elas precisam ou questionar certas coisas que elas necessitam. 

Hoje em dia, tornou-se comum afirmar que as fontes de informação e formação em geral estão muito ideologizadas e que isso comprometeria a compreensão e a postura crítica ante o fenômeno da desinformação. Qual é a sua opinião a esse respeito? 

Sim, tem-se falado muito de que fontes de informação estão ideologizadas. O que eu tenho a dizer sobre isso? Todos os conteúdos que são produzidos são carregados dos valores nos quais as pessoas acreditam. Mesmo que elas tentem ser neutras, nunca vão sê-lo completamente. Tudo passa pelo filtro subjetivo. Esse é um ponto fundamental: não existe fonte de informação neutra. 

A questão é que existe uma distinção sobre a informação que é produzida e cujo autor pode ser cobrado por isso. Por exemplo: um jornalista tem um compromisso com a apuração do conteúdo divulgado, sobre o qual ele pode ser processado judicialmente. Agora, existe uma informação produzida por qualquer pessoa, que pode dizer o que quiser porque considera que está exercendo a liberdade de opinião. São coisas muito diferentes, não podem ser colocadas no mesmo patamar. 

Eu posso discordar das escolhas editoriais de um veículo de imprensa, mas essas escolhas são feitas com base em fatos. Então, um jornal não vai dizer que não existe pandemia (quando existe) ou que caiu um meteoro (quando não caiu) porque ele tem um compromisso com a apuração desses fatos. Isso está regrado pela legislação brasileira e pela empresa desse profissional. Colocar essas duas coisas no mesmo patamar é comprometer a democracia e a própria sociedade. Isso não faz com que as pessoas saibam sobre a realidade e desenvolvam um senso crítico a respeito dos conteúdos que elas leem. Ao contrário, faz com que elas se sintam liberadas para acreditar naquilo que elas quiserem. 

Enquanto sociedade, temos um pacto por meio do qual assumimos certas ações que precisam ser cooperativas; precisamos fazer as coisas pelos outros e não por nós mesmos. O conteúdo que temos hoje e que provoca essa polarização diz em que temos que acreditar. Quem ganha com isso? Com certeza, não é o coletivo, porque essas são estratégias usadas para desconstruir esse consenso. É importante, na democracia, que exista o debate, mas precisamos ter certos consensos enquanto sociedade. Se esses consensos não existirem, não existe cooperação, não existe como construir um grupo social. Todos perdem porque não tem cooperação. Para mim, é uma estratégia para desacreditar conteúdos que são relevantes para o exercício da cidadania e para a existência da sociedade.

Por onde começar, na sua opinião, o combate à desinformação? O que é preciso fazer, em diferentes âmbitos (pessoal, de grupos ou instituições, de comunidade e sociedade nacional e global) para  se superar efetivamente esse problema?

O combate à desinformação começa por nós mesmos, no desenvolvimento do senso crítico, no debate, na construção, no entendimento do outro. Precisamos nos preparar para dialogar e conseguir entender as outras pessoas. Isso também parte da empatia, porque a desinformação – como eu disse – é baseada no ódio, na polarização, em certezas. Entre essas certezas, existem aquelas segundo as quais o outro quer nos fazer mal. Esse é um ponto ruim. Eu acredito que nós precisamos, como sociedade, ter várias iniciativas: dentro de nós, na relação com os outros, no diálogo, na discussão, na compreensão, na empatia do ponto de vista do outro. Mas precisamos também de iniciativas de educação para entender, por exemplo, o que é um conteúdo, como é que funciona uma plataforma, como é que esse conteúdo é mostrado e legitimado. Precisamos de regramento e regulamentação, porque essas plataformas não estão situadas no Brasil, mas fora. Elas trabalham com outras formas de regramento e, muitas vezes, com muito descaso pela legislação brasileira. 

Não estamos falando só de desinformação política, mas de várias esferas de desinformação que podem ser extremamente danosas às pessoas. Precisamos também de ações coletivas, promover esse debate nos nossos espaços, nas nossas comunidades. Pensar sobre isso: quem é que ganha com esses conteúdos? Eles nos ajudam enquanto comunidade a viver melhor? Na verdade, a resposta para isso é não. Eles não ajudam, mas prejudicam, alteram as nossas relações. A desinformação é responsável por muitas quebras de relações sociais, muitos conflitos. Por isso, precisamos pensar em debater essas questões. Entender a desinformação como um processo que atinge a sociedade, que a destrói, é uma questão importante.

Entrevista originalmente publicada pela Revista Cidade Nova, edição maio/2025.
 

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