A fúria e a dor de Nina Simone

O acaso deu uma nova chance para o discurso combativo de Nina Simone soar mais uma vez. No mesmo período em que os EUA voltam a confrontar uma ferida que ainda não cicatrizou – das tensões raciais –, o documentário What Happened, Miss Simone? entrou em cartaz no catálogo da Netflix – serviço de vídeos on demand.

Nina Simone. Foto: Divulgação

Eis a realidade que teima em castigar o país: nove pessoas foram mortas recentemente em um ataque racista em uma igreja evangélica na Carolina do Norte. Anteriormente, o desmantelo de uma ordem pacífica se deu com episódios de violência de policiais brancos contra vítimas negras. Muitos foram às ruas em protesto e o caos se instalou. A pressão por uma postura mais enérgica bateu na porta do presidente Barack Obama, o presidente que um dia representou a superação dessas diferenças.

É por isso que Nina volta a ficar tão atual, ainda mais com este registro do diretor Liz Garbus. Com ele, conhecemos a trajetória sacrificante de uma artista que sonha em ser a primeira pianista negra a fazer um concerto erudito no Carnegie Hall, é rejeitada por escolas de prestígio (por conta de sua cor de pele), renasce na noite a partir do jazz e do blues, vira ícone pop, abraça vertiginosamente a causa negra e depois ruma para um autoexílio na África e na Europa. Descontente, é claro, com o contexto social de seu país de origem e com as agruras da vida pessoal.

Difícil dizer se Nina Simone mais apanhou ou mais bateu em sua vida. As surras foram precoces, desde quando sofria para cruzar ao lado branco da cidade para ter as aulas de piano; ou quando, na igreja, se recusou a tocar enquanto seus pais não pudessem sentar nas primeiras fileiras. Mais tarde, a violência foi doméstica, por conta do ímpeto tirano de seu marido/empresário, que a obrigava trabalhar arduamente. Sua música sempre foi expressão de fuga. Seja para bancar a própria sobrevivência, seja para conter as lágrimas ou mesmo para extravasar a frustração de “não poder” executar um Bach livremente – como uma concertista clássica. O canto, um deleite para qualquer mortal, veio por imposição de um proprietário de um bar: ou ela cantava, ou estava fora.

Com tempo, descobriu que este instrumento de trabalho era uma arma fulminante para escorrer as dores do (próprio) mundo. Mississipi Goddam lavou a alma de toda uma população marginalizada ao longo da história. Segundo o documentário, a composição foi feita em poucos minutos, após Nina ter conhecimento do assassinato de quatro meninas negras numa igreja de Birmingham, no Alabama, em 1963. A raiva foi tanta que lhe rasgou a voz, descreve a filha da cantora a certa altura do filme.

Depois de tanto bater e clamar por uma nova América, sofreu o pior castigo: passou a ser ignorada por contratantes de show, com receio de que sua verve política pudesse interferir no entretenimento do público. Fora dos EUA, veio a solidão, o esquecimento e o diagnóstico de que tinha transtorno bipolar. A filha, de tanto apanhar da mãe na época, buscou refúgio na casa do pai (o mesmo que esmurrou Nina por uns bons anos).

A história é uma tragédia, em suma. Algo que sua obra não deixa escapar em momento algum. Nina Simone foi intensa e fiel ao que sentia. Seu grito por transformação continua pulsante e merece ser contemplado neste belíssimo (e imperdível) documentário.

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Sobre

Pitacos, reflexões e provocações sobre música, cinema, jornalismo, cultura pop, televisão e modismos.

Autores

Emanuel Bomfim

Emanuel Bomfim nasceu em 1982. É radialista e jornalista. Escreve para revista Cidade Nova desde 2003. Apresenta diariamente na Rádio Estadão (FM 92,9 e AM 700), em SP, o programa 'Estadão Noite' (das 20h às 24h). Foi colaborador do 'Caderno 2', do Estadão, entre 2011 e 2013. Trabalhou nas rádios Eldorado, Gazeta e América.