Ler é criar uma relação

No primeiro post do ano em Literatos, gostaria de compartilhar uma experiência que tenho feito em muitos anos de leitura.

Tempos atrás um amigo, o filósofo italiano Giuseppe Maria Zanghì, propôs uma experiência para mim inovadora: ao ler um livro, tentar construir uma relação pessoal com o autor. Isso implica interessar-se por ele, despojar-se de preconceitos, se colocar na pele dele. É um mergulho na mente e na alma do escritor. Finda a leitura, teremos compreendido em profundidade aquela obra e seu autor, com pureza de alma e pensamento. Então poderemos avaliar com maior isenção o que ela nos acrescenta, do que nela discordamos, desfrutando da riqueza que o contato com um “outro” sempre traz.

Biblioteca Pública de Estocolmo, capital da Suécia. Foto: Samantha Marx/Flickr

Tentei ler assim Orhan Pamuk. E tive a alegria de descobrir a profundidade de uma alma turca que se expressa literariamente. Hoje vejo Istambul com outros olhos. Os de Orhan. E quando vejo e leio notícias sobre a atribulada Turquia, me sinto turca com os turcos.

A mesma coisa aconteceu com Saramago. Como interpor filtros entre eu e ele, partindo do princípio, por exemplo, de tratar-se de um ateu, anticlerical? Saramago foi um homem do seu tempo, a quem Deus dotou de uma inteligência arguta e de uma personalidade íntegra! Com certeza foi criado por Ele com imenso amor, como uma dádiva para todos os outros seres humanos. E essa foi a experiência que fiz: a descoberta de um grande homem!

Recentemente li Virgínia Wolf, às voltas com dilemas existenciais e psíquicos que a levaram ao suicídio. A descoberta? Uma mulher extremamente sensível, burilada pelo sofrimento, que soube compreender e desnudar como poucos os dilemas da vida humana em toda a sua complexidade.

Para ficar num espectro bem alargado – que considero importante para uma experiência de abertura a 360º – dias atrás li Tempos extremos, a primeira obra de ficção adulta da jornalista Miriam Leitão. Tenho grande respeito pelo trabalho da Miriam e costumo ouvi-la na rádio CBN e na Globo News. Tempos extremos é um grande livro, muito bem escrito, envolvente, instigante. O que me acompanhou na leitura foi a voz da Miriam, o seu modo de falar, que eu bem conhecia. Por isso a história me foi contada por ela, numa relação real e muito próxima. Aliás foi essa vivência que me fez lembrar da proposta do querido amigo Zanghí, que faleceu no ano passado, e em quem penso com gratidão.



Sobre

No início da Era Cristã, toda a informação que uma pessoa conseguia assimilar durante a vida era inferior ao que está à disposição dos leitores numa edição de domingo de um jornal como O Estado de S.Paulo. É patente a evolução exorbitante do acesso à informação e da multiplicação do conhecimento. A literatura, antes restrita a uma exígua elite de pessoas letradas, continua sendo o canal por excelência para o conhecimento e passou por uma enorme democratização: hoje está ao alcance de todos. Vamos explorar juntos esse admirável mundo feito de “tinta sobre papel” ou de “pixels sobre tela”.

Autores

Fernanda Pompermayer

Formada em jornalismo pela Famecos (PUC-RS) em 1985, há seis anos trabalha na revista Cidade Nova. Foi repórter, editora e atualmente é editora-chefe da revista. Cursou ciências humanas, socais e teológicas no Instituto Internacional Misticy Corporis em Florença (Itália) e no cantão de Friburgo (Suíça).