Jornalismo e literatura em tempos de guerra

Dá para fazer jornal em tempos de guerra? E mais: dá pra conciliar literatura e política nesses textos e contextos?

George Orwell (1903-1950), pseudônimo literário de Eric Arthur Blair, conseguiu também essa proeza em Literatura e Política – Jornalismo em tempos de guerra (Zahar, Rio de Janeiro, 2006). Sobre Orwell, sua obra e sua genialidade já falamos neste blog no post Questão de Autenticidade.

Orwell escreveu entre 1942 e 1948 para o Observer – o primeiro jornal dominical da Grã-Bretanha, que começou em 1791 e continua em circulação até hoje (em 1993 foi comprado pelo The Guardian).

“Àquela altura, George Orwell já havia rompido com o seu passado, envergonhado que se tornara do Império Britânico, após presenciar a violência do colonialismo inglês na Birmânia. Já havia trabalhado em Paris como operário. Havia também lutado na Guerra Civil Espanhola, ao lado dos anarquistas socialistas, juntando-se a partir de 1937 às fileiras do Partido Operário de Unificação Marxista” (Arthur Ituassu, na Introdução à edição brasileira de Literatura e Política).

A experiência espanhola rendeu a ele o conhecimento e a decepção com o funcionamento das engrenagens do poder sob Stalin e de outras formas de totalitarismo, como o de Franco, apoiado por Hitler e Mussolini.

Ao ler esse livro nos deparamos não só com novas pérolas orwellianas, mas também com uma série de informações surpreendentes. Em plena Segunda Guerra Mundial Orwell foi uma espécie de correspondente de guerra, escrevendo semanalmente sobre os eventos em curso, muitas vezes com informações colhidas in loco. Daqui se apreende que apesar da ofensiva nazista e da defesa dos países Aliados, pelo menos os jornais londrinos continuavam circulando.

Pelas suas matérias, além do serviço de informação prestado à população da época, nós, leitores tardios, podemos penetrar em meandros interessantes daquele sangrento capítulo da história humana, que vitimou quase 80 milhões de pessoas.

Literatura e política reúne uma coletânea de 23 artigos e 36 resenhas literárias, dentre os cem que Orwell escreveu no período. Portanto, pelas resenhas dá para saber que as editoras também não fecharam completamente suas portas e seguiram publicando, talvez nos porões da Europa, refúgio para milhares de civis.

Em seus artigos Orwell critica as arbitrariedades exercidas pelos “ismos” do século XX (fascismo, nazismo, comunismo, capitalismo, liberalismo, anti-semitismo), mantendo alta a bandeira dos direitos humanos e da liberdade de expressão. Nas resenhas ele analisa obras que vão de T.S. Eliot a Dostoievski.

Se democracia quer dizer governo popular, é um absurdo considerar a Inglaterra uma democracia. É uma plutocracia assombrada pelo fantasma do sistema de castas. No entanto, se democracia quer dizer uma sociedade na qual se pode ir, em segurança, ao pub mais próximo e expressar sua opinião real a respeito do governo, então a Inglaterra é uma democracia. (da resenha a Armies and the Art of Revolution, de K.C. Chorley)

(...) os comunistas russos transformaram-se necessariamente numa casta governante permanente ou numa oligarquia, recrutada não pelo nascimento, mas por adoção. Uma vez que não podiam arriscar o crescimento da oposição, não podiam permitir a crítica genuína e, uma vez que a silenciavam, frequentemente cometiam erros evitáveis: então, por não poderem admitir que aqueles erros eram seus, tinham que arranjar bodes expiatórios, às vezes em enorme escala. O resultado é que a ditadura endureceu à medida que o regime tornou-se mais seguro, e, hoje, a Rússia talvez esteja mais distante do socialismo igualitário do que estava há 80 anos. (de Marx e a Rússia, 15 de fevereiro de 1948)

Ao ver este livro, sua capa vagamente modernista, suas fotografias brilhantes, sua empertigada, mas imprecisa, bibliografia e seu ar geral de complacente progressividade, é difícil lembrar o revés histórico atroz que está realmente em andamento.. O massacre em massa que vem ocorrendo ao longo dos últimos dez ou quinze anos talvez não importe tanto assim. Tudo o que nos diz é que temos melhores armamentos que nossos ancestrais. Os fenômenos verdadeiramente sinistros de nossa era são a atomização do mundo, o poder crescente do nacionalismo, a adoração de líderes a quem se creditam poderes divinos, o aniquilamento não apenas da liberdade de pensamento, mas do conceito de verdade objetiva, e a tendência a uma lei oligárquica firmada no trabalho forçado. Essa é a direção para a qual segue este mundo em transformação, e é a incapacidade de discutir estes temas que torna difícil levar a sério este livro. (da resenha a This Changing World, editado por J.R.M. Brumwell)

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Sobre

No início da Era Cristã, toda a informação que uma pessoa conseguia assimilar durante a vida era inferior ao que está à disposição dos leitores numa edição de domingo de um jornal como O Estado de S.Paulo. É patente a evolução exorbitante do acesso à informação e da multiplicação do conhecimento. A literatura, antes restrita a uma exígua elite de pessoas letradas, continua sendo o canal por excelência para o conhecimento e passou por uma enorme democratização: hoje está ao alcance de todos. Vamos explorar juntos esse admirável mundo feito de “tinta sobre papel” ou de “pixels sobre tela”.

Autores

Fernanda Pompermayer

Formada em jornalismo pela Famecos (PUC-RS) em 1985, há seis anos trabalha na revista Cidade Nova. Foi repórter, editora e atualmente é editora-chefe da revista. Cursou ciências humanas, socais e teológicas no Instituto Internacional Misticy Corporis em Florença (Itália) e no cantão de Friburgo (Suíça).