Sociedade / Meio-ambiente
  

Já falta água, pode faltar luz

CRISE HÍDRICA. Seca mais grave das últimas décadas faz cidades passarem por racionamento e deixa país sob ameaça de apagão. O problema não é novo, mas há caminhos para, ao menos, amenizar os estragos

por Airam Lima Jr.   publicado às 00:00 de 21/03/2022, modificado às 09:39 de 21/03/2022

FAZ 91 ANOS que os rios brasileiros não ficam tão secos como estão agora. E se falta água no Brasil, também pode faltar luz. Em setembro, os reservatórios das hidrelétricas do sistema Sudeste/Centro-Oeste, que produzem 70% da energia do país, estavam operando com menos de 20% de sua capacidade de geração. Muitas cidades do Sul e Sudeste têm sofrido racionamento de água – alguns municípios do interior paulista chegaram a decretar estado de alerta hídrico – e muita gente ainda traz na memória os apagões de 2001. O governo luta para evitar repetir esse cenário, à custa do uso de fontes de energia mais poluentes, e apela aos brasileiros para que economizem água e luz.

Governo pede para apagar a luz

Essa escassez é o resultado de vários anos com chuva abaixo da média. O Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) informou que a quantidade de água que caiu nos últimos dez anos sobre as bacias dos rios Paranaíba e Grande, afluentes do Paraná, equivaleu ao que cairia em menos de nove anos, na média. Para completar, o volume de chuvas entre setembro de 2020 e maio de 2021 na bacia do Paraná foi o mais baixo dos últimos cinquenta anos. A região metropolitana de Curitiba já passa por rodízio de água há mais de um ano. E, claro, quem mora em São Paulo ainda tem na memória a crise de abastecimento de 2014 e 2015, quando foi preciso bombear água do volume morto do sistema Cantareira, um conjunto de reservatórios que abastece quase 9 milhões de pessoas, para que o fornecimento não chegasse ao colapso total.

Se não fosse o tamanho da bacia do Amazonas (que, aliás, é a maior do mundo), a do Paraná ganharia em todos os quesitos: como ela a abastece os estados de Minas Gerais, São Paulo, Goiás, Mato Grosso do Sul, Paraná e Santa Catarina, além do Distrito Federal, atende quase um terço da população brasileira e tem o maior potencial hidrelétrico instalado do país – é ali, por exemplo, que fica a usina de Itaipu.

Com um sinal vermelho desse tamanho aceso, o presidente Jair Bolsonaro pediu, em sua live de 26 de agosto, que a população economizasse, apagando “um ponto de luz na sua casa”. Cinco dias depois, o ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, foi à televisão estender o apelo à administração pública e às empresas.

Conta sobe e inflação aumenta

Em paralelo, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) anunciou a criação de uma nova bandeira tarifária na cobrança da conta de luz: a de “escassez hídrica”, o que significa o acréscimo de R$ 14,20 no valor do boleto a cada 100 kWh consumidos. Em contrapartida, o governo anunciou que quem reduzir de 10% a 20% do seu consumo médio de energia entre setembro e dezembro, comparado ao mesmo período do ano passado, vai ganhar um desconto na conta de luz de janeiro de 2022. O consumidor vai deixar de pagar R$ 0,50 para cada quilowatt-hora economizado nessa média.

O desconto vale para todos os consumidores do Brasil (exceto os de Roraima), mesmo aqueles de regiões onde a seca não está tão rigorosa. Isso porque existe uma diferença fundamental entre as redes de abastecimento de água e luz no país. Enquanto a primeira depende das condições dos reservatórios locais, a segunda é nacionalmente interligada. Graças aos grandes linhões de transmissão, a eletricidade produzida no Nordeste, por exemplo, ajuda a suprir a carência presente no Sudeste. Roraima é o único estado do país que (ainda) não é ligado ao sistema.

A conta de luz sobe não só porque o governo quer desestimular o consumo desse recurso tão raro agora, mas sobretudo porque, para continuar tendo eletricidade disponível, é preciso, entre as alternativas (como importar energia de países vizinhos), recorrer às usinas termelétricas, que geram energia a partir da queima de gás, diesel ou carvão, ou seja, é um tipo de geração muito mais caro, além de mais poluente. Uma das consequências mais visíveis dessa ação é o aumento da inflação, tão alardeado na mídia nos últimos meses.

Apagão é adiado por enquanto

As termelétricas vão continuar trabalhando bastante porque as chuvas deste verão deverão evitar o caos, mas não serão suficientes para solucionar de vez a crise. O diretor-geral do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), Luiz Carlos Ciocchi, declarou, no fim de setembro, que “não há a possiblidade de racionamento de energia em 2021”, mas os especialistas em recursos hídricos admitem que não sobrará água suficiente nos reservatórios para a próxima estação seca. Assim, o problema deve se prolongar, e pode até ser agravado pela persistência dos fatores climáticos e ambientais que o causaram, como La Niña e desmatamento.

“É preciso transparência, não só do governo federal, mas também dos estaduais, para lidar com essa crise”, afirma o secretário-executivo do Observatório da Governança das Águas (OGA), Angelo Lima. Mas o governo não está acionando mais termelétricas e pedindo à população para apagar a luz? “Os reservatórios não vêm sendo recuperados desde 2012; o desmatamento aumentou não só na Amazônia, mas em todos os biomas brasileiros; as áreas de mananciais estão sem cobertura vegetal...”, justifica ele.

Lima entende que a crise de agora foi, realmente, influenciada pelas mudanças climáticas, mas o descaso no planejamento hídrico ao longo dos anos fez com que chegássemos a um ponto que poderia ter sido evitado.

O que pode atrapalhar a tentativa de economizar é que, depois das crises recentes de abastecimento de água e luz registradas no país, muita gente já passou a tomar atitudes mais racionais no consumo. Em uma pesquisa realizada em 2016, depois da grave seca que assolou São Paulo, mais de 70% dos entrevistados responderam que passaram a reduzir a quantidade e a duração dos banhos. Como a crise hídrica afetou também o preço da energia, 70% também declararam que trocaram as lâmpadas de casa por modelos mais econômicos.

Além disso, mesmo sabendo que há muito desperdício nas residências, os números mostram que quem gasta mais água é a agropecuária, com a irrigação das plantações e na criação de gado. Para produzir um quilo de carne bovina, por exemplo, são gastos, em média, 15,5 mil litros de água.

Consumo reduzido pela metade 

Mesmo com tantos desafios pela frente, já há muita gente economizando água e luz, e é gente que gasta pouco ou muito. A Ambev, maior fabricante de bebidas do Brasil, tem um programa que fez reduzir em mais da metade seu consumo de água nos últimos vinte anos. Esse plano de gestão hídrica está disponível gratuitamente para pequenas e médias empresas que utilizem água em seu processo produtivo. “As mudanças propostas não são tecnologias muito caras”, relata Fernanda Ferreira, coordenadora programática da Fundación Avina, organização que desenvolveu o modelo da plataforma a partir da experiência da Ambev e agora dá apoio aos interessados. “Por exemplo, às vezes as soluções passam por aproveitar a água da chuva para a descarga sanitária ou reduzir a vazão do registro de água.”  

Passando para o poder público, a Prefeitura de Extrema (MG) paga aos proprietários rurais que preservam o solo da erosão, tratam a água e o esgoto e mantêm a cobertura vegetal nas áreas de preservação em seus imóveis. Essa iniciativa reduz a poluição ambiental e preserva as áreas de mananciais. Com isso, a água da chuva é absorvida pelo solo e realimenta o manancial, o que reduz a perda no período de seca.

Outro exemplo vem de uma organização sem fins lucrativos, a Comissão Pastoral da Terra, que já trabalha há mais de dez anos na recuperação de nascentes e áreas degradadas do Cerrado, e está lançando agora a campanha “Salve uma Nascente”. A proposta é arrecadar, numa primeira fase, R$ 30 mil, que serão investidos na formação das comunidades locais para que elas mesmas atuem na preservação da água e da terra.

Por Airam Lima Jr.

Matéria originalmente publicada pela Revista Cidade Nova, edição Novembro de 2021.