Uma história bem contada

Há alguns anos as livrarias nos oferecem muitas novas edições de “histórias” do Brasil, do mundo, do século... Laurentino Gomes levou três prêmios Jabuti pelas excelentes obras 1908, 1922 e 1899. Anos antes Elio Gaspari escancarou os porões da ditadura em quatro volumes monumentais, para ficar só em dois exemplos.

Todos esses livros são de extrema importância num país como o nosso, em que a história nunca foi muito bem contada... Para as pessoas da minha geração, que nasceram, cresceram e completaram os estudos sob o regime militar, havia muitos pontos obscuros a serem esclarecidos e muitos heróis a serem derrubados de seus pedestais. Além do mais, as obras mais recentes, geralmente escritas por jornalistas, são prazerosas de se ler, quase romances históricos, sem pecar contra a verdade dos fatos.

No rol desses livros reveladores, e publicado ainda em 1994, encontra-se Coluna prestes: o avesso da lenda, da jornalista Eliane Brum. Hoje escritora e colunista do espanhol El país na sua edição em português, Eliane refez a trajetória da Coluna Prestes (de 25 mil quilômetros!), do Rio Grande do Sul – atravessando o sudeste, a Bahia, Sergipe, Paraíba, Piauí, Ceará, Maranhão, Tocantins – até a Bolívia. O livro é o resultado do olhar de uma repórter 70 anos depois, numa viagem de 44 dias.

“O avesso da lenda” é um título perfeito para esse livro que desmistifica a figura de Luiz Carlos Prestes pela voz de quem estava lá, à margem da estrada ou morando nas cidades por onde passaram os “revolucionários”. Os que morreram, marcados pela trágica experiência, transmitiram a seus descendentes o gosto amargo da fome, da humilhação e da destruição a que foram submetidos.

Em Iguatemi, Mato Grosso do Sul, Eliane conversou com Lila Fernandes Waloszek, 74 anos. Ela conta que se escondeu no mato com os irmãos quando os revoltosos chegaram e passaram “uma fome de cão”. Na volta, ao avistar o povoado, os olhos quase falharam: “Tudo queimado. Roubaram joias, roupas, armas, calçados. Mataram o gado”. Lila desabafou: “Eu não entendo porque os livros insistem em dizer que o Prestes foi um herói. Se ele fez alguma coisa boa, onde é que ela está? (...) Foi só destruição. O povo passou anos difíceis até se recuperar, naquele tempo isso aqui era o fim do mundo. Mas não se entregou. Pode botar aí: ‘aqui, Prestes e sua coluna não deixaram saudade’”.

O agricultor João Sabino Barbosa, de Jaraguari (MS), fugiu para não ser forçado a integrar a Coluna. “Mal o sol amanheceu, voltou para a família. Encontrou a mulher com o sexo rasgado, sangue nas roupas arrebentadas e os olhos parados, vazios. A menina já estrebuchando de berrar sem ser ouvida”.

Em Valença do Piauí, Joana também tem história para contar: “Eu tinha um medo que me pelava. Era um povo esquisito. Invadiam, prendiam os donos, matavam a criação e faziam uma bagaceira danada. Era igual àquele povo do cangaço”.

No sertão do Tocantins fica Natividade, terra do vaqueiro Florêncio Pereira. Ele nunca tinha cruzado o Rio Tocantins antes daquele outubro vermelho de 1925. Ele foi outro que conseguiu evitar o confronto direto com a Coluna refugiando-se com a família no alto da serra. O retorno à casa parece comum aos outros lugares onde o bando passou: cinzas, destruição, alimentos cruelmente estragados, garantindo um futuro de fome para quem sobreviveu. “Mais de 50 vacas, porcos e filhotes foram mortos e apodreciam debaixo de um sol inclemente”.

“Era 3 de fevereiro de 1927 quando 620 homens esfarrapados, doentes e famintos marcharam em passos trôpegos pelas ruas da vila Boliviana de San Mathias. Ali deixaram noventa fuzis Mauser, quatro metralhadoras pesadas, dois fuzis-metralhadoras e oito mil tiros. Partiram do Rio Grande como um exército revolucionário de 1.500 homens, alcançaram a Bolívia como uma horda de mortos-vivos. A bandeira da liberdade jaz perdida em algum dos 15 estados percorridos, alguma curva dos mais de 25 mil quilômetros de uma das maiores marchas da história da humanidade”.

Um circo de horrores? Sim, a seu modo, com todo tipo de violações e atrocidades. Não dá para contar outra história, nem criar um final feliz. Seria cair no mesmo erro histórico. Ainda bem que de tempos em tempos algum corajoso toma sobre si a tarefa de iluminar as áreas de sombra no retrato da história.

Coluna prestes: o avesso da lenda é um livro esgotado na editora (Artes & Ofícios) e nas livrarias. Com muito custo dá para resgatá-lo em algum sebo Brasil afora. Mas a busca vale a pena. É achar, ler e compartilhar.

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Sobre

No início da Era Cristã, toda a informação que uma pessoa conseguia assimilar durante a vida era inferior ao que está à disposição dos leitores numa edição de domingo de um jornal como O Estado de S.Paulo. É patente a evolução exorbitante do acesso à informação e da multiplicação do conhecimento. A literatura, antes restrita a uma exígua elite de pessoas letradas, continua sendo o canal por excelência para o conhecimento e passou por uma enorme democratização: hoje está ao alcance de todos. Vamos explorar juntos esse admirável mundo feito de “tinta sobre papel” ou de “pixels sobre tela”.

Autores

Fernanda Pompermayer

Formada em jornalismo pela Famecos (PUC-RS) em 1985, há seis anos trabalha na revista Cidade Nova. Foi repórter, editora e atualmente é editora-chefe da revista. Cursou ciências humanas, socais e teológicas no Instituto Internacional Misticy Corporis em Florença (Itália) e no cantão de Friburgo (Suíça).