“Minha função é dar um chacoalhão nas pessoas.”

É COM AS PALAVRAS que Joice Berth pretende romper com preconceito racial histórico no Brasil. Confira a entrevista completa.

por Emanuel Bomfim   publicado às 00:00 de 19/11/2020, modificado às 10:19 de 20/11/2020

Joice Berth

Arquiteta, escritora e militante

É COM AS PALAVRAS que Joice Berth pretende romper com preconceito racial histórico no Brasil  

Parafraseando o médico Drauzio Varella, como podemos exortar a palavra meritocracia num país marcado por desigualdades tão profundas? A cartilha liberal tupiniquim parece não ter encontrado respostas plausíveis para o drama que assola o Brasil desde seu nascedouro. Ou, pior: preferiu reforçar o preconceito de classe ao tirar sarro da empregada que vai à Disney. Apesar de representar a maior fatia da população brasileira (55,8%, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), os pretos e pardos estão por último na fila das oportunidades. Diversos recortes estatísticos dão conta da tragédia histórica. Taxa de analfabetismo, por exemplo: o índice da população negra é três vezes maior do que o da branca. Vamos falar de mercado de trabalho? O rendimento médio mensal de brancos é 73,9% superior ao dos pretos e pardos. Quando migramos para o espectro da violência, o drama aumenta. A  taxa de homicídios dos pretos e pardos supera a dos brancos em qualquer faixa etária. Entre os jovens, o cenário é desolador: 98,5 por 100 mil habitantes (entre 15 e 29 anos). Na população branca, na mesma faixa etária, o índice cai para 34 por 100 mil habitantes. Esses dados foram tirados de pesquisa do IBGE, divulgada ano passado. O que fazer diante de um cenário tão catastrófico? Que democracia é possível defender se há tantas disparidades? A reportagem de Cidade Nova foi debater o racismo com a arquiteta e urbanista Joice Berth, um dos nomes que vêm oxigenando a militância negra e feminista. Lançou, em 2018, o excelente livro O que é empoderamento?, pela editora Letramento.

A gente aplica erroneamente o termo “raça” quando se refere à cor de pele?                 

O pessoal das ciências e da biologia diz que raça não existe, que todos fazem parte de uma única raça, que é a raça humana. Isso é lógico, óbvio. Acontece que existe uma construção social e cultural por trás desse termo. Embora sejamos todos humanos de fato, alguns se sobressaem, dentro de um conjunto de ações que formam privilégios, ou seja, se estabelece um pensamento que divide a raça humana e que vai categorizar de acordo com a cor da pele. Existe um conceito social, não conectado exatamente com a biologia. Na verdade, se todas as pessoas entendessem o conceito biológico de raça e vivessem com esse conceito, não teríamos a necessidade de estar apontando o quanto a cor da pele interfere na vida das pessoas.

 

O mito da democracia racial nos cega até hoje?

Esse mito começou a ruir de uns tempos para cá. Está sendo desconstruído lentamente. Há uns dez anos, se você conversasse com uma pessoa negra ou branca, ela ainda estaria se apoiando nisso cegamente. Hoje em dia, graças ao trabalho dos movimentos negros, isso está sendo quebrado. Lélia Gonzalez foi uma das primeiras intelectuais ouvidas nessa oposição ao mito da democracia racial. Foi a primeira a reverberar isso, junto ao Abdias do Nascimento. Antes, muitas pessoas negras já falavam, mas a partir deles, você consegue ter uma voz ecoando um pouco mais. A internet, depois, conseguiu democratizar um pouco mais os meios de comunicação e dar voz a pessoas que anteriormente não seriam ouvidas. Isso é muito positivo, porque a partir daí se consegue ter discussões mais sérias.

 

Boa parte dos negros ainda não se reconhece como oprimido ou esse cenário já mudou?

Isso vem mudando lentamente. Eu tenho uma grande referência de pensamento de intelectualidade, o geógrafo Milton Santos. E ele fazia muito esse alerta para que não se misturasse o processo de formação da negritude brasileira com o mesmo processo nos Estados Unidos. A história deles é muito diferente da nossa. Apesar de o racismo, enquanto opressão, existir aqui e lá, nossos processos são diferenciados. Aqui, a gente demorou muito mais para construir uma consciência racial. Então, quando a gente fala do “Dia da Consciência Negra”, por exemplo, não é uma data só destinada às pessoas brancas. Também é um dia de reflexão e de acirramento da militância para pessoas negras que foram ludibriadas, envolvidas nesse mito da democracia racial e acabaram perdendo a noção da realidade em que elas mesmas estavam inseridas.

É preciso pensar em meios de transformação que vão além do campo simbólico e cultural?

Tem um trabalho psicológico também a ser feito, porque essas questões de opressão são políticas, mas atingem nossas relações sociais. É muito mais profundo. É preciso muitas abordagens. E a educação não pode, de jeito nenhum, se omitir. Ela é, a meu ver, a peça central na erradicação disso.

 

Na sua avaliação, as cotas raciais no Brasil tiveram sucesso?

Aquilo que foi apurado com números e estatísticas mostra que houve avanços importantes. Mas, se pensarmos em todo contexto, eles ainda são muito tímidos, muito lentos. Comemoramos poque são conquistas que demoraram muito tempo para conseguirmos alcançar. Sendo bem realista, no entanto, a gente sabe que é muito pouco, que é incipiente. Infelizmente, a política de cotas foi aplicada de maneira incompleta. Tudo que é feito para a população negra no Brasil sempre é pela metade, porque sempre exclui a negritude do processo. Você não pode agir e falar por um grupo de pessoas sem incluí-las. Por isso, a gente briga tanto pelo conceito do “lugar de fala”. Paralelamente a essa política de cotas, a gente deveria ter suporte profissional pós-universidade. Não é porque a gente adquire um diploma universitário que a gente está garantido no mercado de trabalho. E, além disso, deveria ter proporcionado um avanço no sistema educacional como um todo. Porque a intenção das cotas nunca foi ser uma política permanente, mas transitória, de reparação histórica, que tem que funcionar por um período.

 

No Brasil, há o agravante da questão social, que torna o cenário ainda mais delicado...

As pessoas de esquerda, por exemplo, chamam a militância antirracismo dos movimentos negros de identitária. Elas dizem que o problema do Brasil é de classe, não de raça. Mas quando você vai olhar para os indicadores, você percebe que quem está ocupando os índices mais altos de precariedade são as pessoas negras. Não tem como contestar a fala da Angela Davis que “classe forma raça”. A questão social está apoiada na questão racial.

Como é se posicionar num ambiente tão marcado pela polarização?

É muito difícil. Dar sua cara a tapa dentro de uma luta política em que você tem um gigante monopolizando, uma hegemonia branca masculina, que manda e desmanda, é extremamente desconfortável. Pensando no caso de Marielle Franco, é extremamente perigoso também. É bastante complicado, a gente é atacada o tempo todo. Mas alguém tem que fazer o trabalho chato de despertar as pessoas. 

E como deve ser a resistência? É possível ser conciliador?

A resistência tem que ser, acima de tudo, com muita sensibilidade, para que você possa sentir o timing de cada coisa. A gente tem dois grandes exemplos históricos de que gosto muito, amo muito e tenho como referência, que são Martin Luther King e Malcom X. Muitas vezes, as pessoas falam que a gente tem que ser como Martin Luther King, que era um pacifista. E outras pessoas falam que temos que ser como Malcom X, que era um pouco mais agressivo. Eu acho que são duas partes de um caminho estratégico que precisa ser mediado. Há situações em que é necessária mais firmeza e outros momentos que você precisa atuar com um pouco mais de tranquilidade.

No debate político partidário, a questão da discriminação racial é só uma bandeira da esquerda ou esse tema já está mais disseminado?

Deveria ser uma bandeira da esquerda.

Mas você sente resistência na esquerda?

Sim, muita, muita. Infelizmente. Não só na questão racial, como na questão de gênero também.  As mulheres estão de fora, as pessoas negras estão de fora das disputas partidárias. E isso eu acho um grande problema, embora eu seja esquerdista. Mas penso que nós, que fazemos essas lutas, temos que estar acima dessas questões partidárias, porque a gente está falando de coisas que envolvem a sociedade inteira.

Você vê algum horizonte de o Brasil ter no futuro um presidente negro?

Olha, gostaria muito, mas não vejo, não, apesar de ter quadros maravilhosos que poderiam entrar nessa disputa. Infelizmente, no momento, não dá para ter essa esperança.

Por que você escolheu a arquitetura?

Sempre fui muito ligada nas questões da cidade. Sempre fui mais interessada pelo urbanismo do que exatamente pela arquitetura. É uma profissão que te permite ter uma formação humana mais ampliada, é multidisciplinar, fascinante. No Brasil, temos grandes nomes, conhecidos e desconhecidos, especialmente no ramo do urbanismo.

O quanto nossas cidades reproduzem o preconceito racial histórico?

Se você anda pelas cidades, não pensa que negros e indígenas passaram por ali. Sobre o indígena, você ainda tem os nomes de ruas e avenidas, alguma informação. Agora, a história negra foi completamente apagada do contexto urbano. Existem alguns grupos que têm feito discussões e passeios pelas cidades fazendo esse resgate histórico. As questões sociais são espelhadas nos espaços das cidades. Quem tem direito exatamente à cidade? Teoricamente todo mundo tem esse direito. Mas quando você pega uma lupa e olha bem de perto, não é bem assim. As mulheres não transitam pela cidade de maneira livre. As pessoas LGBT têm horários definidos para circular pela cidade, as pessoas negras têm outro lugar. Costumo dizer que a configuração da cidade obedece ao modelo colonial. Você tem a Casa Grande, que são as centralidades, e tem a Senzala, que são as periferias e favelas. Nada disso está desconectado de ações políticas. É consequência de um planejamento urbano que foi pautado por uma política racista. Essas questões precisam vir mais à tona.

Como foi para você o despertar de uma vocação de liderança no debate público?

Não me vejo como uma liderança. Às vezes, a gente tem algumas oportunidades de ter uma visibilidade um pouco maior, mas as lideranças, de fato, não são tão visíveis assim. Meu ativismo foi muito natural, nada premeditado. A conscientização racial foi acontecendo gradativamente na minha vida, foi despertando ao longo do tempo, fui me vendo como uma pessoa feminista, enfim, fazendo esse tipo de trajetória. E, em algum momento, a minha escrita impactou pessoas e, de alguma forma, tem ajudado e tem reverberado e trazido um pouco mais de questionamento. Tenho levado como função dar um chacoalhão nas pessoas.

 

Emanuel Bomfim

 

Entrevista originalmente publicada na edição de Março/20 da Revista Cidade Nova 

 
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